A “pré-vigarização” da TAP e as suas consequências
Carta semanal de Rui Tavares | 6 de setembro de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
“Sim, a TAP foi comprada com o seu próprio dinheiro, mas esta frase obscurece o verdadeiro escândalo, que é maior e mais profundo. Porque antes de ser comprada com o seu próprio dinheiro, a TAP foi comprada por David Neeleman com dinheiro da Airbus. E quando Neeleman passou a controlar a TAP, decidiu abandonar um negócio que seria ótimo para a TAP e passar a fazer um que seria ótimo para a Airbus. Mas como e porquê?”
A história de como a TAP foi vigarizada conta-se nesta carta que tem, na verdade, duas histórias. A outra é uma parte da vida de Joseph Conrad, o homem que desceu aos infernos e nos mostrou o Coração das Trevas.
Recordo que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita. — Se quiserem saber mais sobre o nome desta carta, vejam aqui.
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Rui
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A “pré-vigarização” da TAP e as suas consequências
A história conta-se assim. As construtoras como a Airbus fabricam aviões, mas demoram anos a conceber e produzir novos modelos. Foi esse o caso do A350, que levou dez anos (2005-2015) à Airbus para o desenhar e desenvolver, e que encaixava como uma luva nos interesses da TAP. Mais largo, com mais capacidade para mais passageiros e cobrir maiores distâncias, o A350 era uma maravilha para as rotas em que a TAP era boa, e por isso a TAP encomendou doze logo em 2005 (ainda antes da Singapore Airlines encomendar vinte em 2006) quando o A350 ainda era uma miragem. O rarefeito mundo da aviação ficou boquiaberto: a companhia portuguesa seria uma das primeiras a ter um dos aviões mais inovadores do mercado, e por um excelente preço, por se ter arriscado a apostar no modelo tão cedo. Quando o avião estava finalmente pronto para voar, em 2015, havia muito mais interessados em pagar mais dinheiro por ele, e a Airbus tinha naturalmente mais interesse em vender a esses novos clientes. Mas antes, havia uma carteira de encomendas com compromissos mais antigos para satisfazer. Se a Airbus incumprisse, haveria certamente indemnizações a pagar. A não ser que fosse a TAP a desistir… e aí seria a TAP a pagar a multa. E é exatamente isso que Neeleman faz quando toma conta da TAP no fim de 2015 — e o montante para pagar a multa é o mesmo que a Airbus já lhe tinha adiantado.
No Expresso desta semana podem ler a crónica completa
Conrad, cem anos de um contemporâneo
E hoje, curiosamente, quando se comemoram os cem anos da morte de Conrad, que foi visto como emblematizando todos os dilemas do imperialismo, do colonialismo, do racismo, do capitalismo, da globalização e da modernidade, não há nada na vida de Joseph Conrad que mais se pareça com as notícias da atualidade do que o seu local de nascimento. Poderíamos mesmo substituir o já costumeiro “sabias que o Conrad, apesar de escrever tão bem em inglês, era polaco” por um mais recôndito “eu sei que já sabes que Conrad escrevia em inglês e era polaco; mas sabias que ele nasceu na Ucrânia?”. Sim, Conrad nasceu em Berdychiv, na atual Ucrânia. A sua cidade natal fica na região de Zhitomir, bombardeada logo nos primeiros dias da recente invasão da Ucrânia pela Federação Russa, em 2022. É em Zhitomir que se encontra uma escola devastada que Portugal, como parte de um esforço europeu, tem obrigação de reconstruir. Mas tudo isto era muito diferente na época em que Conrad lá nasceu. E talvez seja por isso que é mais proveitoso voltar a olhar para Conrad agora, antes de regressarmos às suas mais que batidas atualizações. Chega o ponto em que, depois de tantas atualizações de Conrad, vale a pena começar por procurar as suas origens lá onde ele nasceu. Cem anos depois, o cosmopolita Conrad pode ser lido começando pelo seu torrão natal. E se em vez de querermos fazer dele nosso contemporâneo à força pelo que tem de igual connosco, fôssemos procurá-lo no que tem de diferente? E se isso — o passado dele — fosse tão ou mais instrutivo do querer sempre situá-lo no presente?
Na verdade, é ao entender como as circunstâncias em que nasceu Conrad são tão especificamente locais e marcadas pela história do nacionalismo que melhor podemos explicar a sua vontade de desenraizamento ao fugir, primeiro, para o mundo dos barcos e dos portos em Marselha, quando o francês é ainda a sua única língua ocidental europeia, depois tornar-se súbdito de sua majestade a rainha Vitória, e finalmente vir a ser um escritor global de língua inglesa. Melhor levantar essa ponta do véu para ajudar o leitor a vir connosco, porque o mundo para onde vamos é bastante diferente de tudo o que conhecemos agora.
Podem ler o ensaio completo na Revista Expresso.
As exigências do agora
Partilho uma crítica do jornalista Paulo Roberto Pires, da Quatro Cinco Um, sobre o meu livro Agora, agora e mais agora. Podem ler aqui .
(Na foto acima podem ver Alfred Dreyfus, um oficial do exército francês, protagonista de um dos mais notórios casos de injustiça e antissemitismo da história do século XX, conhecido como o Caso Dreyfus. Podem encontrar a sua história no livro e no posdcast do Agora, agora e mais agora).
Agora, agora e mais agora no Foro Teresina
O Agora, agora e mais agora foi recomendado no Foro de Teresina, um dos melhores podcasts de política brasileiro. A recomendação aparece mais para o final do episódio, mas vale a pena ouvi-lo inteiro, pois o conteúdo é de alta qualidade.
Escolhas e consequências
Escrevi esta crónica, enquanto ainda cronista do jornal Público, em 15 de junho de 2015 sobre a privatização da TAP durante o governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas.
O exemplo maior é, agora, o da TAP. O governo avançou com a privatização sem acautelar qualquer consenso ou compromisso. Não foi apenas além do memorando com a troika, no seu tempo de vigência e no seu conteúdo. Foi para lá de qualquer razoabilidade. Manda o bom senso que um processo destes tenha forçosamente que sustentar-se numa boa base de aceitação social e política. Se os partidos do governo acreditam que uma maioria de portugueses é a favor da privatização da TAP, então deveriam apresentar-se a eleições com essa prioridade bem alta nos seus programas, e logo se veria se os eleitores lhes dariam ou não legitimidade para avançar. Se não o fazem, é porque temem que esta não seja uma proposta ganhadora. Nesse caso, deveriam ter o sentido da responsabilidade coletiva de não proceder a uma privatização destas no fim do mandato.
(Público, 15 de junho de 2015)
Uma péssima ideia para o país
Privatizar a TAP em 2024 não é melhor ideia do que foi em 2015. O LIVRE chamou Miguel Pinto Luz e Maria Luís Albuquerque ao Parlamento para darem mais explicações sobre este negócio que é tão prejudicial para o país. Vê a Isabel Mendes Lopes na Assembleia da República.
Leituras da semana
Left Identitarianism Is Also A Mirror World — Ben Burgis
Na resenha de Doppelganger de Naomi Klein, Ben Burgis explora o conceito de "mundo espelhado".
Warped — John Harwood
O artigo explora o dilema enfrentado pela comunicação social americana sobre figuras políticas controversas como Donald Trump e Joe Biden.
Compra da TAP: nova auditoria avaliada pelo MP dentro da investigação que já existia — Pedro Sales Dias
Sobre a privatização da TAP.
Telegram
É por aqui o meu canal no Telegram: https://t.me/ruitavarespt . Vemo-nos por lá!
Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
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