Conspurcadores da liberdade — πολύτροπον - "de muitos caminhos"
Carta semanal de Rui Tavares | 24 de novembro de 2023
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Esta semana: “a outra guerra da Crimeia (não essa, a outra ainda)”, os “partidos da liberdade” nas eleições argentinas e holandesas, o alargamento do subsídio de desemprego às vítimas de violência doméstica, primárias abertas do LIVRE e mais…
— E, no final da carta, partilho excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
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Um abraço,
Rui
Conspurcadores da liberdade
De Milei já se sabe que termina os seus discursos com um sonoro “¡Viva la libertad, carajo!”. Mas a sua liberdade não inclui a capacidade de o estado apoiar uma pessoa a libertar-se do analfabetismo pela educação, da doença pela saúde, ou da miséria pela assistência social. Milei já confirmou que acabará com os ministérios correspondentes a estas missões do estado, que ficará assim reduzido às suas funções repressivas. A liberdade de Milei é a liberdade de ser deixado ao abandono se formos pobres e a liberdade de não ajudar ninguém se formos ricos. Não tem nada a ver com a libertação da fome, da pobreza, da dominação e da ignorância que constitui desde a Antiguidade o cerne mais profundo da ideia e da filosofia da Liberdade.
Nos Países Baixos, o partido que ganhou, e procurará agora formar governo, elegeu 35 deputados. Mas destes, apenas um — o líder — é membro do partido. Porque o partido chamado “pela Liberdade” tem apenas um membro, que é o próprio presidente do partido, Geert Wilders. Mais ninguém tem direito de decidir da sua plataforma política, do seu programa, dos seus atos ou candidatos. No “Partido pela Liberdade” apenas o chefe decide, todos os outros não existem sequer como membros do partido. Neste peculiar entendimento da liberdade, apenas uma pessoa é verdadeiramente livre — as outras são livres apenas através dela. É um entendimento da liberdade igual ao de que gozaram os ditadores da Europa em 1930, apenas ainda não tendo tido o tempo e o poder suficiente para nos levar às tragédias a que estes levaram.
Excerto da minha crónica no Expresso (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
A outra guerra da Crimeia (não essa, a outra ainda)
Na passada semana saiu na Revista do Expresso um ensaio meu sobre a Guerra da Crimeia (1853-1856) que me deu muito gozo a investigar e escrever, e que nos revela uma Europa e um mundo com uma guerra que começa e acaba onde hoje temos de novo guerra. Espero que gostem de o ler também. Começa assim:
Dois homens nascidos em Lisboa, e da mesma geração, conversam em São Petersburgo sobre a situação na Crimeia e como ela poderá ser decisiva para a história da Europa. O dia é (e não é) 16 de setembro de 1855. No fim de tudo lá explicarei o parêntesis atrás. O primeiro homem é José Luís de Sousa Botelho Mourão e Vasconcellos, primeiro conde de Vila Real. Nasceu em Lisboa, em 1785, embora tenha vivido por longos períodos na sua Casa de Mateus, em Trás-os-Montes. Poliglota e refinado, estudou em Gottingen, no reino de Hanôver, hoje na Alemanha. É agora embaixador de Sua Majestade Fidelíssima, o Rei Dom Pedro V de Portugal (que era aclamado nesse mesmo dia 16 de setembro de 1855, em que fazia 18 anos, do outro lado do continente europeu, em Lisboa). O segundo homem chamava-se Karl Robert Nesselrode e tem uma história mais surpreendente, pelo menos quando vista pelos olhos de hoje. Nasceu em Lisboa, sim, mas num barco na barra do Tejo, no ano de 1780.
O seu pai era alemão, Karl Wilhelm Nesselrode, um conde católico do Sacro Império Romano-Germânico; a sua mãe, chamada Louise Gontard, tinha origens francesas mas protestantes. E o recém-nascido Karl Robert foi batizado em Lisboa numa igreja anglicana, porque era o mais próximo que se arranjava do protestantismo da mãe (o pai, cultivado na filosofia das Luzes, não ligava à religião). Que vinha a família fazer a Lisboa? Bem, o pai Karl Wilhelm era diplomata, mas a sua itinerância não era apenas a que imaginamos hoje; não só o seu estatuto o obrigava a viajar de capital em capital como naquele tempo os diplomatas não representavam necessariamente apenas o país da sua nacionalidade, podendo prestar serviço aos soberanos que os contratassem.
O pai Nesselrode já tinha representado como diplomata a Áustria, a Holanda (ou melhor, a República das Províncias Unidas das Terras Baixas), o Reino de França e a Prússia. Recentemente, fora contratado pela czarina Catarina, a Grande, “imperatriz e autocrata de Todas as Rússias”, e foi na qualidade de seu ministro plenipotenciário que chegou a Lisboa. Seis anos depois, a mãe do pequeno Karl Robert morre, e o pai pede para sair da corte portuguesa; a família Nesselrode foi enviada para Berlim quando Karl Robert tinha 7 anos. O menino Karl Robert ingressaria a seu tempo na carreira diplomática russa e, apesar de não ser russo nem ortodoxo de origem, mas “anglicano toda a vida”, como haveria de explicar na sua autobiografia, neste dia 16 de setembro de 1855 já é o equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros do Império Russo há quatro décadas.
Com apenas 34 anos, o czar Alexandre I nomeou-o chefe da delegação russa ao Congresso de Viena, que ordenou a Europa após as guerras napoleónicas. Com o czar Nicolau I, a partir de 1825 fez 30 anos da sua carreira, incluindo o início desta guerra a que agora chamamos “da Crimeia”. Em 1855, aos 74 anos, sob o czar Alexandre II, o outrora pequeno lisboeta Karl Robert Nesselrode é um dos grandes nomes da diplomacia europeia, com um percurso talvez apenas comparável ao de Metternich e Talleyrand.
Aqui podem ler o texto completo na Revista do Expresso.
Subsídio de desemprego para vítimas de violência doméstica
Uma conquista significativa foi alcançada esta semana. Foi promulgada, pelo Presidente da República, a proposta do LIVRE de alargamento do subsídio de desemprego que inclui as vítimas de violência doméstica.
Primárias do LIVRE
Começaram as primárias abertas do LIVRE para a escolha dos nossos candidatos e das nossas candidatas para as eleições legislativas antecipadas. Até 27 de novembro, qualquer cidadão ou cidadã que se identifique com os valores, princípios e ideais do LIVRE, poderá candidatar-se às primárias abertas ou inscrever-se para votar nas mesmas!
Para votar nas primárias do LIVRE basta que se revejam na nossa carta de princípios e não estejam inscritos noutro partido político e que se inscrevam para votar.
Lanço-vos assim o desafio de participarem na escolha dos candidatos e candidatas do LIVRE através desta ligação: Votar nas Primárias 2024.
O LIVRE é o partido português da esquerda verde europeia, com uma visão ecologista, cosmopolita, libertária e universalista que reconhece e antecipa os desafios do século XXI.
Acreditamos num novo modelo de desenvolvimento para o país, ecológico, assente na valorização da ciência e do conhecimento e que garanta a transição ecológica.
Deixo-vos o desafio de virem connosco provar que é possível um outro modelo de desenvolvimento no nosso país.
Conto convosco?
Leituras da semana
An Open Letter To My Friends Who Signed “Philosophy for Palestine” — Seyla Benhabib
A privatização da liberdade: usos e desvios contemporâneos das ideias libertárias — Diogo Duarte
In Which Areas of Philosophy Should We Expect Faster Progress? — Justin Weinberg
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.