Olá amigas e amigos,
Bem-vindos e bem-vindas a πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos", carta semanal. Esta semana, os nossos muitos caminhos levam-nos a: Guterres, Israel, a Palestina e a ONU; ao alargamento do subsídio de desemprego às pessoas com estatuto de vítima de violência doméstica; um artigo sobre o centenário de Italo Calvino, um texto completo (em inglês) sobre qual deve ser a melhor estratégia política para os ecologistas; mais leituras, iniciativas e agenda.
Espero que gostem!
— E, no final da carta, partilho novamente excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
(Quem não quiser receber este email, é só clicar em "unsubcribe" abaixo, ou enviar mensagem solicitando a retirada da minha lista de contactos.)
Um abraço,
Rui
E se tivesse acontecido no vácuo?
E se Guterres tivesse dito o contrário do que disse? Da maneira como foi atacado, temos de considerar a possibilidade de que quem o ataca considera que, sim, os ataques “ocorreram no vazio” ou mesmo, como acreditam ser o caso, que “surgiram do vazio”. Desconsideremos então, para lhes fazer a vontade, qualquer conhecimento do contexto. Partamos do absoluto zero e consideremos apenas os ataques, na sua brutalidade, na sua crueldade, na sua injustificabilidade total, tal como os descrevi aqui logo na semana em que ocorreram. Se os ataques tiverem vindo do nada, isso muda alguma coisa no cenário humanitário que Guterres descreveu? Se os ataques do Hamas tiverem vindo do nada, isso justifica mais — ou até menos — o sofrimento dos outros palestinianos de Gaza que não são do Hamas?
Então, se o que disse Guterres não foi controverso, e mesmo se Guterres tivesse dito o que alguns querem que ele tivesse dito, isso justificaria ainda menos a crítica da sua conclusão humanitária, por que gerou a sua frase tanta controvérsia? É extraordinário que, numa era tão desconfiada com tudo, ninguém tenha dado a resposta óbvia: porque houvesse quem gerasse a controvérsia pela frase, em particular o embaixador de Netanyahu que imediatamente pediu a demissão de Guterres por ela.
Excerto da minha crónica no Expresso para assinantes.
Objects of Political Desire IX: Should the Greens Embrace Obstructionism?
O “obstrucionismo”, em ciência política, envolve a estratégia de deliberadamente criar obstáculos e impedimentos sistemáticos que atrasam ou bloqueiam a aprovação de leis em um órgão legislativo, como um parlamento, por exemplo. Neste artigo no Green European Journal, explico como a “obstrução” não é uma estratégia sustentável a longo prazo. A base do movimento verde sempre foi construtiva e a responsabilidade política é encontrar soluções práticas para enfrentar crises, em oposição à obstrução como estratégia.
A strategic choice, on the other hand, concerns the very nature and identity of a movement. The Green movement may have initially come to the attention of the media and the masses with acts of obstructionism, but political ecology was born in defence of a future – harmonious, sustainable, peaceful, and based on solidarity – to be built together. The famous “four pillars” at the basis of so many Green parties during this last half-century – environmental sustainability, social justice, grassroots democracy, and international peace and human rights – illustrate how Green politics has been conceived from the start as constructive rather than obstructionist. If we elevate obstructionism from a mere tactic to the strategic core of green politics, we risk creating an opposition between what we are and what we do, and we will be defined more by what we oppose than by what we propose.
Obstructionism is sometimes presented as a necessity rather than a choice, on the basis of the realisation that everything else has not worked. But such defeatism should be rejected: from a long-term perspective, the Green movement has been an incredible success story. Most green ideas and arguments have gone mainstream and have been widely accepted by the majority – and for good reason.
Leia o texto completo no Green European Journal, acesso livre.
Quem agrava a crise tem de contribuir para a solução
Abaixo podem ler a transcrição desta minha intervenção no parlamento sobre a emergência habitacional que vivemos.
“Portugal tem um problema na habitação, a falta do parque habitacional público — já de décadas. Esse problema transformou-se numa crise na habitação, quando os juros baixos e uma procura global que é essencialmente insensível aos preços, puxaram os preços das casas todas em Portugal para cima. E agora Portugal tem uma emergência na habitação quando temos casos de pessoas que trabalham, têm salários e não conseguem pagar a casa.
Para resolver isto é preciso fazer o caminho ao contrário, resolver a emergência na habitação com os fundos que provêem daqueles que ajudaram a criar a crise, ao mesmo tempo em que construímos o parque habitacional público, que vai demorar anos e de que carecemos há séculos. E para isso, a solução não é proibir a venda de casa a não residentes. Desse ponto de vista, digo-o ao Bloco, claramente, proibir a venda de casa a não residentes é um erro de política, uma vez que se proíbe aquilo que é ilícito ou criminal, e aquilo que não é ilícito nem criminal se regula e não se proíbe. Mas é, acima de tudo, um erro político, porque é um erro tentar responder ao nacionalismo, ao populismo, ao proibicionismo e ao simplismo da direita, com versões equivalentes à esquerda destas respostas que não funcionam, abrindo a porta à pior demagogia, como já vimos aqui.
Portugal é, neste momento, o país da União Europeia e está no pódio mundial dos países mais procurados por milionários globais, que são basicamente insensíveis à subida nos preços e que se podem muito bem pagar 1 milhão, a pronto, por uma casa em Lisboa ou no Porto, devem ter uma sobretaxa do IMT e pagar 1.200.000 €, o que permitirá, segundo os nossos cálculos, só de compradores não comunitários o preço médio de casas em Portugal é de mais de 400.000 €, o que significa que mais de um terço destas casas estão à venda por mais de meio milhão de euros e muitas por mais de 1 milhão, segundo os nossos cálculos, significa ter, em termos de contributo para resolver o problema, cerca de 100 milhões a 150 milhões anuais. Permitiria, em vez de estarmos a fazer reforço de 7 milhões de euros nas políticas de resposta ao problema dos sem abrigo, fazer reforços dez vezes maiores, ou 15 vezes maiores, ou 20 vezes maiores.
Isto significaria, no imediato e, assim, concluo, senhora presidente, significaria no imediato, poder responder à situação de trabalhadores e trabalhadoras que estão sem teto e, que se ficarem muito tempo na rua, vão sair muito mais caro ao Estado e à nossa sociedade. Significaria poder ajudar a pagar a renda e a prestação de casa a quem agora não o pode fazer, mas sem recurso aos outros contribuintes e, a prazo, resolver os problemas de gentrificação e de abandono de bairros e descaracterização de cidades."
Italo Calvino, um mestre para o século XXI
No centenário de Italo Calvino, escrevo sobre suas obras — e não só — neste artigo na Revista do Expresso desta semana.
Assim, em três fábulas que são três divertimentos literários, lemos sem nos darmos conta três metáforas da liberdade, da identidade, e do problema do bem e do mal. Os Nossos Antepassados representam o momento da carreira de Calvino no qual, em meu entender, ele passa de poder ser considerado simplesmente um muito bom escritor para ser qualquer coisa de outro nível, e muito rara: um observador filosófico que se exprime de forma literariamente virtuosa.
O que ele deixou para trás foi a sua fase neo-realista e de escrita mais diretamente politizada, sem nunca ter sido um escritor-militante panfletístico. As suas novelas do primeiro período, incluindo as das séries “A Vida Difícil” e os “Amores difíceis” contêm momentos tão densos de sentido, tão “pregnantes", como os contos “A formiga argentina" ou “A especulação imobiliária”, que apesar de partirem de situações do real social têm qualquer de absurdo e inatingível, a fazer lembrar Kafka.
Do mesmo timbre, embora escrito depois, em 1963, vem O Dia de um escrutinador, um relato de um dia passado como delegado eleitoral quando ainda era membro do Partido Comunista Italiano, e em filigrana o diálogo interno da sua personagem entre as figuras que vê à frente numa Itália miserável e a oposição moral aos desvios internacionais do comunismo exemplificados pela invasão da Hungria.
Esse “escrutinador” é com pouco disfarce o próprio Calvino, a quem chamei ali atrás de “observador filosófico”. Noutra tipologia de romances e recolhas de contos seus — que incluem Palomar (1983), Marcovaldo (1963) e Sob o Sol jaguar (1986) — vemos em Calvino um criador marcado sobretudo pela capacidade da atenção. Esta é, aliás, a base da boa escrita — a capacidade de observar atentamente — muito mais do que a capacidade expressiva em que muitas vezes mais superficialmente nos focamos. Nestes livros Calvino consegue escrever sobre uma onda, uma vitrine de queijos ou os pensamentos de um homem que vê um seio nu na praia sem tornar as suas narrativas em exercícios de estilo mas em atos de alinhamento com as coisas.
Aqui está o texto completo na Revista do Expresso.
Leituras da semana
Já pensou o que será estar numa relação violenta e não conseguir sair dela por medo de perder o emprego? Porque o "amor não é uma prisão" e porque esta é uma questão de vida ou de morte para muitas pessoas, o LIVRE propôs no parlamento que o subsídio de desemprego possa ser concedido a pedido das vítimas com estatuto de violência doméstica. É sobre isso que escreve a minha camarada de partido e nº 2 nas listas por Lisboa, Isabel Mendes Lopes. Podem ler aqui.
E mais…
Guy Newey — A Modest Proposal to help fix the housing crisis…
Italo Calvino — Seis propostas para o próximo milénio
Agenda
No próximo sábado, dia 28 de outubro, estarei no Ciclo Revoluções, no Centro Cultural de Belém, para uma conversa sobre a Revolução Francesa. Começa às 11h e a sessão tem interpretação em língua gestual portuguesa. Até lá!
Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.