Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Esta semana exploramos um breve regresso ao passado (e futuro) com os ministros das finanças e as suas visões económicas para o nosso país; a palavra “romã”; os riscos de desaparecimento do mirandês; uma conversa sobre o terramoto de Lisboa de 1755; acessibilidade nos transportes públicos e mais.
Espero que gostem!
— E, no final da carta, mantenho para esta edição a partilha dos excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
(Quem não quiser receber este email, é só clicar em "unsubcribe" abaixo, ou enviar mensagem solicitando a retirada da minha lista de contactos.)
Um abraço,
Rui
Excedências
"Do ponto de vista económico o debate nacional ainda é, essencialmente, o de há duzentos ou mesmo trezentos anos. Deve Portugal ser um país de alto valor acrescentado ou de baixos custos de produção? A pergunta parece ter uma resposta fácil na teoria (quem não quer ser um país de alto valor acrescentado?) mas na prática a resposta mais fácil é sempre ser um país de baixos custos de produção. Ou tem sempre assim sido, desde os tempos em que o padre António Vieira explicava o modelo económico português dizendo que “sem Brasil não há Portugal; mas sem Angola não há Brasil”. Ou seja: sem ouro do Brasil não há independência de Portugal, mas sem escravatura não há extração do ouro. O ministro das finanças que chorava no parlamento tinha perdido o ouro do Brasil com a independência deste, uma década antes. A tempo, esse ouro seria substituído pelo colonialismo em África, e este pelos subsídios europeus. A escravatura pelos trabalhos forçados e estes pelos salários baixos. O problema orçamental português só é orçamental à superfície. Na base é um problema económico, social e político (...)".
Excerto da minha crónica no Expresso para assinantes (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
Romã = Granada = رمان
Na minha aldeia, enquanto comíamos das nossas romãs, perguntei-me por que os nossos vizinhos europeus lhes chamam “granada” e afins, e nós assim. Fui à Wikipedia, encontrei a palavra árabe رمان e depois colei num site de pronúncia. A palavra é persa e os egípcios dizem-na igual a nós.
A propósito disso, um amigo mostra-me uma notícia da semana passada: “Pediu ‘romã’ mas mostrou ‘granada’: Tradutor trai cliente e provoca alerta no Cais do Sodré”. Note-se que isto só poderia acontecer com um azeri russófono, em azeri a palavra é “nar”. Aparentemente também se diz “anar” em persa, parecido com a palavra nas línguas turquicas.
Galego na Assembleia da República
Muito orgulho em ter levado o académico Xosé Henrique Costas à Assembleia da República, principalmente pelo alerta que nos veio lançar sobre os riscos de desaparecimento do mirandês e o que é preciso fazer para o contrariar. E sim, falou em galego e toda a gente entendeu tudo. Vejam aqui a sua intervenção.
1 de novembro de 1755, o dia em que Lisboa caiu por terra — Podcast
No passado 1 de novembro, tive a oportunidade de conversar com Henrique Monteiro e Lourenço Pereira Coutinho sobre o terramoto de Lisboa de 1 de novembro de 1755. Falámos sobre o impacto do terramoto no pensamento e obra de Voltaire e o seu "Cândido ou o Otimismo”.
Falámos também do Marquês de Pombal e a consolidação do seu poder em Portugal.
Podem ouvir a conversa no podcast do Expresso, “A História Repete-se”.
Agora, agora e mais agora
«Agora, agora e mais agora: seis memórias para o último milénio», chegará às livrarias no próximo dia 16 de novembro. São sete volumes que surgiram originalmente em formato podcast, em colaboração com o jornal Público.
Acessibilidade nos transportes públicos e na cidade
No passado 25 de outubro entregámos uma proposta na Câmara Municipal de Lisboa que defende uma cidade verdadeiramente acessível. A fraca acessibilidade nos transportes públicos tem representado uma das principais fontes de exclusão e discriminação enfrentadas pelas pessoas com deficiência e incapacidades.
A proposta foi realizada com contributos essenciais da Associação Portuguesa de Deficientes, ACAPO e City Able. A quem, pessoalmente, agradeço pela constante disponibilidade e valorosa contribuição.
Podem saber mais sobre alguns pontos desta proposta na apresentação do Carlos Teixeira, na última reunião pública na Câmara Municipal de Lisboa.
Que futuro para o país?
O Orçamento do Estado para 2024 foi discutido na generalidade esta semana na Assembleia da República. Deixo uma das minhas intervenções no vídeo que podem ver acima e também transcrita abaixo:
Muito obrigado, senhor Presidente, senhoras e senhores deputados, senhores membros do Governo, senhor Primeiro-Ministro e, muito especialmente, caros concidadãos, em particular muitos jovens, nas galerias hoje e que nos deram o privilégio ea honra de nos acompanhar e que merecem que neste encerramento, todos os partidos e o Governo, no final, façam a si mesmos a pergunta: será que o nosso debate esteve à altura dos sonhos que estes e estas jovens têm para o país?
Será que este debate esteve à altura de, pelo menos, responder a uma pergunta concreta que deve estar na cabeça de cada um de nós e, se não tivermos resposta para ela, não estamos aqui a fazer nada que é, exatamente, que visão temos nós para o futuro do país?
Da parte do LIVRE ela é muito clara, queremos uma economia do conhecimento e uma sociedade radicalmente inclusiva.
Nós queremos um país em que quem tenha sonhos, não veja cortadas as suas asas. Que tenha capacidade de, se for dinâmico, de prosperar, e queremos que essas pessoas sejam o motor que não deixa ninguém para trás.
E o teste de um orçamento é perceber se ele nos deixa mais perto ou mais longe dessa visão para o país.
Este orçamento representa o fim de um ciclo em que, é verdade, o país fez um caminho importante na resolução de alguns equilíbrios financeiros.
É um orçamento que pensa em termos de excedente, em tempos de crescimento, mas não é um orçamento que prepare o país para dar esse salto no qual o país possa subir na escala de valor, em que o país não esteja eternamente no fundo da tabela dos salários médios dos países mais desenvolvidos da Europa, o que vai reter esses jovens no nosso país, porque é isso, decisivamente, mais do que a conversa acerca da carga fiscal, que vai ou não reter estes jovens no nosso país.
É, essencialmente, eles e elas saberem que os seus pais, e as suas mães, e os seus avôs e avós podem entrar no hospital e serem atendidos. É saberem que se vierem a ter um filho que necessite de uma educação especial, que a escola pública seja capaz de encaminhar esse filho ou essa filha pelo seu futuro, que lhes dê o mesmo futuro que nós da geração a seguir ao 25 de Abril tivemos com a construção do Estado Social em Portugal.
E, para isso, falta muito a este orçamento.
Senhoras e senhores deputados, senhores membros do Governo, o LIVRE, ontem, reuniu a sua assembleia para deliberar sobre este orçamento e tendo em conta que tinha sido da parte do Governo...
(Ruidosa interrupção pela extrema-direita)
Permita-me acrescentar, senhor presidente, principalmente respeito por quem vem assistir a este debate e teve a assistir a ele atentamente e viu, certamente, enquanto esteve a assistir a ele atentamente quem avilta permanentemente o trabalho parlamentar, achincalhando assim a democracia.
(Fim da interrupção)
A deliberação de que o voto na generalidade seria uma abstenção tem a ver com uma razão apenas: negociar este orçamento na fase de especialidade e torná-lo melhor do que aquilo que ele é neste momento.
O LIVRE estende uma mão a essa negociação e sabe o tamanho que tem neste parlamento, onde há um Governo que tem uma sustentação de maioria absoluta e que, naturalmente, define a estratégia orçamental, mas não pode ficar por aí, não pode achar que disse a última palavra.
Se o Governo achar que ter uma ambição para o Serviço Nacional de Saúde, que ter uma ambição para a ciência, que não pode sair deste orçamento com o mais baixo investimento em democracia, que ter uma ambição para responder à crise dos sem-abrigo é demasiado para um partido como o LIVRE, com apenas um deputado, digam-nos e não gastamos o tempo de ninguém.
Se acham que essa ambição não é uma ambição para um ou outro partido nesta Assembleia, mas para todo o nosso país, vamos então conversar.
Vamos fazer deste orçamento melhor para poder ter um voto diferente do que o voto contra na votação final global.
Leituras da semana
E como a carta vai longa, recomendo as leituras abaixo para esta semana:
Vale a pena
Apesar do clima ameno, Portugal é o país da União Europeia onde se passa mais frio dentro de casa. Portuguesas e portugueses não conseguem aquecer-se no inverno ou arrefecer as suas casas nos dias mais quentes. Foi por isso que o LIVRE apresentou na Assembleia da República a proposta 3C: Casa, Conforto e Clima, uma estratégia de combate à pobreza energética. A proposta foi apresentada em 2022, melhorada este ano, 2023, e queremos ainda que seja reforçada em 2024. Neste texto de Luísa Schmidt, no Expresso desta semana, a autora escreve sobre esta proposta no quadro da utilização dos Vales Eficiência para arranjos e equipamentos domésticos. Abaixo um excerto e aqui o texto completo.
Alguns aspetos eram simples de corrigir, mas outros implicam até uma mudança de paradigma no modo como as administrações públicas se relacionam com os cidadãos: a proximidade, o conhecimento direto das condições reais de vida, a disponibilidade para acompanhamento, a paciência para explicar e encontrar a solução mais adequada, a sincera vontade de obter os resultados pretendidos.
É que são essas as principais mudanças do novo aviso do Vale Eficiência, e trazem melhorias óbvias: desde logo, o montante triplica, passando de 1330 euros+IVA que pouco mais dava do que para uma janela eficiente, para 3900 euros+IVA; depois é possível ser-se apenas arrendatário e não dono da casa para concorrer ao apoio; depois constituiu-se uma instância de mediadores para apoiarem e facilitarem as candidaturas e, claro, simplificaram-se os procedimentos para a aprovação das mesmas.
E mais…
Heloísa Oliveira, Margarida Sampaio, Armando Rocha, et al. — As Cidades Na Era das Alterações Climáticas
Andrew Duff — Towards common accord? The European Union contemplates treaty change
João Macdonald — Paris, 1919: Pacheco, Almada, Homem Christo e a Chez Fast
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.