E agora Portugal? — πολύτροπον - "de muitos caminhos"
Carta semanal de Rui Tavares | 10 de novembro de 2023
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Esta semana caminhamos, com futuro incerto, pela situação política atual em Portugal, pelos direitos humanos e pela democracia — que precisa muito de todos nós.
— E, no final da carta, ainda mantenho para esta edição, a partilha dos excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
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Um abraço,
Rui
E agora Portugal?
As crises políticas resolvem-se. Com novas eleições, ou novas lideranças, ou ambas as coisas. Mas as crises de regime não têm respostas simples, e esta crise tem elementos indisfarçáveis de crise de regime. Em qualquer das suas versões. Se houve corrupção ao mais alto nível executivo — enquanto escrevo, as últimas notícias são de que teriam sido encontrados mais de 75 mil euros em notas escondidas em livros e caixas de vinho na sala de trabalho do chefe de gabinete do Primeiro-Ministro — é a autoridade do Governo que é posta em causa. Se temos um poder judicial que força a demissão do Primeiro-Ministro por um parágrafo num comunicado de imprensa e que dá informações a conta-gotas a jornalistas, é toda a natureza da relação entre poderes (e entre estes e o povo soberano) que está em causa. Se é o partido que ainda há pouco tempo obteve uma maioria absoluta a ser cúmplice ou conivente com este estado de coisas, crise de regime. Se são partidos oportunistas a tirarem partido destas situações para minarem a democracia por dentro — crise de regime.
Escrevendo a partir da convicção de que este foi o melhor regime da nossa história — o que mais nos educou e deu perspectivas de vida, o que mais nos enriqueceu e abriu ao mundo, o que mais nos libertou e chamou a participar — e que merece ser salvo e merecemos todos que a democracia pluralista, de modelo europeu, com um forte estado social seja o mais longevo dos regimes políticos da nossa modernidade, olhemos para lá do curto prazo e pensemos no que é preciso fazer para o garantir.
Portugal precisa de uma nova cultura de integridade e transparência na gestão da coisa pública. Tenho aqui ao meu lado uma pilha de papéis sobre a Start Campus, o agora célebre super-centro de dados a ser construído em Sines, alimentado por energias renováveis, e que ainda há menos de uma semana o ministro João Galamba elogiou no parlamento como sendo uma “nova AutoEuropa”. À primeira vista, tudo na descrição deste projeto parece ser o tipo de investimento de que precisamos em Portugal — uma infraestrutura de base da economia de dados e do conhecimento, ligada à transição energética e ao desenvolvimento regional. Mas se assim é, por que raio têm estes bastiões da modernidade de ser decididos e dirigidos à moda opaca e personalista da política antiga? Quanto mais crucial o investimento, mais se justifica o envolvimento da população, a transparência, a criação de organismos independentes e de fiscalização — tudo aquilo que defenda o interesse público e, de caminho, o interesse à consciência tranquila dos políticos que a queiram ter.
Excerto da minha crónica no Expresso (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
A cidadania inteira
Intervenção minha sobre a situação política, a seguir ao anúncio de eleições antecipadas pelo Presidente da República, transcrita abaixo:
"Não há como dourar a pílula. O que vimos nos últimos dias é mau, é demasiado mau para a nossa democracia.Quer queiramos acreditar na versão de corrupção ao mais alto nível do executivo, a poucos metros do escritório, do gabinete do Sr. Primeiro-Ministro; quer queiramos acreditar na versão do Ministério Público que faz fugas de informação a conta gotas; quer queiramos acreditar na versão de que há partidos oportunistas que se vão aproveitar de tudo isto para minar a democracia por dentro; quer achemos que, no fundo, essas versões têm uma parte de verdade, não há como dourar a pílula.
O que temos à nossa frente, quem dera que fosse apenas uma crise política que se resolvesse com eleições. É mais sério do que isso. É uma crise de regime que todos nós temos de contribuir para debelar. Para salvar uma democracia deste tipo de enquistamentos é preciso a cidadania inteira É preciso que os grandes projetos do nosso país sejam transparentes, sejam rigorosos e sejam responsabilizados. Quando nós vemos que aquilo que está em causa são projetos de transição energética no hidrogénio e no lítio ou projetos da economia de dados com a construção de um super centro de dados em Sines, nós percebemos que o que está errado não é Portugal querer combater as alterações climáticas, não é Portugal querer subir na escala de valor em termos de economia, é isto tudo ser feito com os métodos da democracia antiga, opaca, personalizada e, muitas vezes, capturada por interesses privados. É contra isso que nós temos que dizer que é preciso mudar a prática política em Portugal.
É preciso mudar a cultura de poder, tanto no poder político, como no poder judicial, e que para isso é preciso uma vigilância serena por parte da cidadania. Para não contribuir que este estimular da situação política beneficie atores populistas, autoritários e que mesmo que agora tentem fazer-se passar por “pele de cordeiro” na verdade quererão usar as regras da democracia para subvertê-la. Portanto, Portugal precisa de nós, a democracia precisa de nós e a maneira como nós vamos passar o ano dos 50 anos do 25 de Abril não é a comemorar o 25 de Abril, é de salvar o 25 de Abril com seu sonho democrático, do seu estado social forte, duma democracia de tipo europeu, que nos convoca a todos para muito mais do que além das eleições, ter o espírito cívico que proteja as instituições do Portugal democrático."
Nunca Mais
O Dia Internacional Contra o Fascismo e Antissemitismo foi comemorado ontem, dia 9 de novembro, num tempo em que a democracia está novamente ameaçada. Deixo convosco um texto que escrevi em 2018 para o jornal Público e também um excerto:
Uma das perguntas recorrentes sobre a política atual é: olha lá, mas achas que metade dos brasileiros (ou húngaros, ou filipinos, ou estadunidenses) são fascistas? E essa é uma pergunta que é impossível de responder sem perguntar de novo: vocês acham que os italianos dos anos 20 eram todos fascistas e os alemães dos anos 30 eram todos nazis?
Basta ler as descrições da chegada de Mussolini ou Hitler ao poder para perceber que a resposta a essa pergunta não era evidente nem sequer na época em que não se pode negar que o fascismo fosse fascista. Um autor como Sebastian Haffner, que viveu a ascensão de Hitler ao poder e escreveu das análises mais clarividentes sobre o que se passou, não descreve a sociedade alemã dos anos 30, nem sequer o eleitorado do partido nazi, de forma homogénea. Entre os eleitores de Hitler, havia os que acreditavam em toda a parafernália ideológica do nazismo. Havia os que queriam mudança, mesmo que fosse para ver o circo pegar fogo, e que se escondiam por detrás do aspecto bufão de Hitler (como de Mussolini) para votar nele dizendo acreditar numas partes do que ele dizia e não levar a sério outras partes do que ele dizia. Todos tinham votado noutros partidos antes, como hoje acontece. E havia — como há sempre — os oportunistas, os ex-falhados da vida, os ambiciosos que não tinham conseguido subir as escadas do poder nas velhas estruturas republicanas e que se aproveitavam da convulsão política para se tornarem fascistas de ocasião. Muitos desses até poderiam ter sido indiferentes antes aos temas e lemas do fascismo e do nazismo. Mas se era o que estava a dar, alinhavam no jogo e já papagueavam anti-semitismo, violência e nacionalismo como se fossem o “abre-te sésamo” para o sucesso no novo regime — porque eram, como hoje há quem diga umas tretas sobre as elites, os globalistas, os imigrantes e o Soros e ache que a receita está feita. E mesmo assim Hitler não ganhou as eleições e ainda precisou da pusilanimidade das elites conservadores para chegar ao poder. A partir daí nunca mais houve eleições justas. Os ex-falhados, oportunistas e fascistas de ocasião são recorrentes entre as biografias dos anos 20 e 30. A começar pelo próprio Hitler, que falhou sistematicamente nas suas repetidas tentativas de chegar à fama como artista — até ao momento em que foi extremamente bem sucedido em levar a Europa à guerra e o seu país à ruína. Para os dois tipos de fascista, tanto o convicto como o de ocasião, as consequências não têm importância. O caos faz parte do plano e sem ele, nada — nem o seu talento, nem a sua capacidade de trabalho, nem a sua trajetória ou a sua obra — justificaria que se lhe entregasse o poder. O fascista convicto e o fascista de ocasião são duas faces da mesma moeda, ontem como hoje.
Aqui podem ler o texto completo no Público.
Espanha condecora António Guterres
O Governo espanhol esteve muito bem ao condecorar, no passado dia 7 de novembro, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, pelo seu contributo na defesa da democracia, do multilateralismo e dos direitos humanos e pela sua atuação na crise humanitária em Gaza.
Por um cessar-fogo imediato em Gaza
Isabel Mendes Lopes, deputada municipal do LIVRE, falou na Assembleia Municipal de Lisboa sobre o massacre que está a acontecer em Gaza e da urgência humanitária de um cessar-fogo. Podem ver o seu discurso no vídeo abaixo.
Leituras da semana
Simone Weil (1934) — Oppression et liberté
Andrew Duff — Towards common accord? The European Union contemplates treaty change
Teresa Pina — Direitos Humanos: o que está por fazer o século XXI
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.