É possível querer um país sério e um país a sério
Carta semanal de Rui Tavares | 20 de abril de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos à πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Esta semana, percorremos o caminho do “Portugal antes do parágrafo e depois do parágrafo”, e também retornamos a 1851 e de lá caminhamos até ao início do século XX para aprender lições da “ignóbil porcaria”. Essa jornada nos leva até aos dias atuais com uma pergunta: por que razão a direita continua a comportar-se como se estivesse na oposição? A resposta encontra-se abaixo, assim como alguns excertos do grupo parlamentar do LIVRE na Assembleia da República.
Espero que gostem!
— E… No final da carta, partilho excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
Ah! Lembro que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita.
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Rui
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É possível querer um país sério e um país a sério
“Esse desejo de um país sério, com gente séria, políticos sérios e agentes económicos sérios é um desejo bom. E não é um desejo inatingível: há sociedades nas quais os pressupostos de um comportamento público ético, responsável e transparente estão mais ou menos firmados, e é possível fazer um caminho para gradualmente sermos um país cada vez mais sério. O problema da conversa populista do “vamos acabar com a corrupção”, sempre centrada no reforço de meios e no endurecimento de penas, é precisamente que essa não é uma conversa séria. A conversa populista, aliás, é igual à conversa que é feita nos países mais corruptos do mundo: parte-se do princípio de que vai haver corrupção, o que é preciso é investigar, condenar e punir. Ao invés disso, os países menos corruptos do mundo centram as suas políticas públicas na prevenção da corrupção, ou seja, na criação de mecanismos de decisão de tal forma transparentes, escrutináveis e participados que tornem o ato corrupto, mais do que desencorajado, praticamente inconcebível à partida.
É aí que vem cair a decisão do Tribunal da Relação de negar o recurso ao Ministério Público no Caso Influencer. A gente lê o que escreveram os juízes da Relação e distância entre a cultura de exercício do poder político e do poder judicial é tão grande, as diferenças de percepção sobre o que são atos comuns ou atos potencialmente criminais de um governante são tão radicalmente diferentes que ficamos a pensar: mas não houve ninguém para rever passos decisivos da investigação e perguntar aos seus responsáveis se isto é mesmo assim? E depois não houve ninguém na Procuradoria para perguntar o que tinha e não relevância na investigação, não houve ninguém para se perguntar sobre o parágrafo e por aí adiante. E a gente pergunta-se: isto é a sério? É que um país a sério, com instituições que funcionem de forma responsável, não faz as coisas assim.”
A crónica completa está no Expresso (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
O que a “ignóbil porcaria” tem para nos ensinar hoje em dia.
“Quais as lições da “ignóbil porcaria”, termo cunhado no início do século XX, para os dias de hoje? Que o pânico é mau conselheiro, mas a falta de imaginação é pior ainda. Os regimes acabam quando os seus principais políticos cometem erros graves. Incluindo os que têm relativa estabilidade e duram 50 anos”
Portugal teve em tempos um regime relativamente estável, que durou 50 anos, baseado num sistema de alternância entre dois principais partidos, um de centro-direita e outro de centro-esquerda.
Não, não estou a falar do nosso tempo. Falo-vos do “rotativismo” que durou, sem grandes alterações, de 1851 até ao início do século XX. O Partido Regenerador, de centro-direita, era o herdeiro do antigo Cartismo, ou liberalismo moderado, assente na Carta Constitucional outorgada pelo rei em vez de numa Constituição aprovada por uma assembleia eleita pelo povo, e que em consequência preconizava uma certa ascendência do rei sobre a política nacional, e que tinha sido reorganizado acima de todos por Fontes Pereira de Melo. Após a morte de Fontes, a sua principal figura veio a ser Hintze Ribeiro, que definiu o seu partido como sendo “monárquico, conservador e liberal”, e que se orgulhava de ter ouvido uma vez da boca do próprio rei que “o Hintze Ribeiro é mais monárquico do que eu”.
Do outro lado, no centro-esquerda, estavam os herdeiros do Setembrismo (de Passos Manuel, Almeida Garrett e José Estêvão, os primeiros políticos a assumirem-se entre nós “de esquerda”, uma designação que só tinha começado a adquirir conotação política pouco tempo antes de eles nascerem) que por sua vez eram os herdeiros do liberalismo radical e constitucional do Vintismo, ou seja, da primeira revolução liberal bem-sucedida em Portugal. Por isso foram chamados durante bastante tempo o Partido Histórico. Uma sua cisão teve o nome de Partido Reformista, mas passado pouco tempo “históricos” e “reformistas” voltaram a entender-se e assinaram um acordo de fusão na Praia da Granja, em Vila Nova de Gaia, no dia 7 de setembro de 1876. Desse Pacto da Granja nasceu o Partido Progressista, novo nome do partido que já de antes, com António José de Ávila (que a maior parte dos transeuntes conhece dos nomes de ruas e avenidas como “o duque de Ávila”), fora sempre a grande alternativa aos Regeneradores.
Podem ler neste link o ensaio publicado na revista Expresso em 11 de abril de 2024
As guerras culturais e a manha da oposição permanente
A nova década trouxe ao país um novo ciclo político, e com esse novo ciclo político a direita portuguesa governa hoje a República no seu conjunto, as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, as duas maiores cidades do país e muitas capitais de distritos. Isto sem contar com a Presidência da República, há já quase duas décadas..
Tudo isto é bom, e legítimo, e até de louvar — para quem lutou por isso e para quem, como eu, lutou contra isso. A alternância faz parte da vida democrática, as eleições em Portugal são livres e justas, e a verdade é que este ciclo de direita se sucedeu a um ciclo de esquerda duradouro. A questão que se coloca é: por que razão a direita continua a comportar-se como se estivesse na oposição?
(…) O papel de oposição é mobilizador e confortável, e acima de tudo desresponsabilizador. Não sendo à oposição que se pede contas, nada melhor do que estar no poder com uma atitude de oposição. Por isso a tática é evidente: se não se pode fazer oposição ao governo quando se está no governo, pode fazer-se oposição ao que resta da influência da esquerda no meio cultural ou universitário, ou de forma mais geral à sociedade civil de esquerda.
Esta tática não é nova.”
No Expresso do dia 11 de abril de 2024
Enquanto isso, no Parlamento…
Condições dignas para os trabalhadores das plataformas digitais
No parlamento defendemos a necessidade de garantir condições laborais dignas para os profissionais que atuam nas plataformas digitais. A inovação tecnológica carece de um complemento social igualmente inovador. Simplesmente afirmar que os trabalhadores são livres não é suficiente para garantir sua verdadeira liberdade profissional e quotidiana. Vejam a intervenção do Jorge Pinto, deputado do LIVRE.
A economia da partilha ou economia da exploração?
Os trabalhadores das plataformas digitais precisam de respostas urgentes para as suas reivindicações: mais regulação, mais fiscalização, aumentar pagamentos, diminuir comissões. A exploração de motoristas e estafetas e a precariedade laboral não podem ser um modelo de negócio. Isabel Mendes Lopes, deputada e líder parlamentar do LIVRE, intervém neste sentido no parlamento.
Cumprir Abril é olhar para o futuro
Proteger as famílias não significa impor-lhes um único e inflexível modelo. Paulo Muacho intervém no Parlamento para dizer o LIVRE está firmemente comprometido com os direitos humanos e progressos no caminho desses direitos, dos quais não abrimos mão.
Do LIVRE só contarão com futuro
Há quem queira atirar-nos para o passado, mas connosco só contarão com ideias e medidas para melhorar o futuro para todos e todas.
Leituras da semana
Paris, 1919: Pacheco, Almada, Homem Christo e a Chez Fast — João Macdonald
Has Capitalism Been Replaced by “Technofeudalism”? — Sheelah Kolhatkar
Las revolucionarias ideas de Bakunin (2008) — Iain Mckay
Telegram
É por aqui o meu canal no Telegram: https://t.me/ruitavarespt . Vemo-nos por lá!
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
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