Humanizar os direitos humanos — πολύτροπον - "de muitos caminhos"
Carta semanal de Rui Tavares | 8 de janeiro de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Nesta primeira carta do ano, continuamos pelo reconhecimento da Estado da Palestina, a necessidade de humanizar os direitos humanos e salvaguardar o Estado social, o apoio de que precisamos para eleger um grupo parlamentar. E também relembramos o Programa 3C — Casa, Conforto e Clima — e os vales eficiência para combater a pobreza térmica.
… E mais!
— No final da carta, partilho excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
Ah! Lembro que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita.
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Um abraço e um boa ano a todas e todos!
Rui
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O ano do reconhecimento do Estado da Palestina
Deixo convosco um excerto da minha crónica no Expresso, sobre a necessidade de reconhecimento do Estado da Palestina, representado pela Autoridade Palestiniana, legitimada pela Organização da Libertação da Palestina, à qual o Hamas não pertence.
À chamada comunidade internacional resta por isso uma de duas opções. Ou permanecer no caminho vazio da retórica e dos apelos à diplomacia e à paz. Ou entender que é preciso recusar a política de factos consumados no terreno que pretendem tornar inviável a solução dois estados. Se for abandonada a hipocrisia e houver finalmente um assomo de coragem, há um passo que é essencial dar: reconhecer a independência do Estado da Palestina, representado pela Autoridade Palestiniana, legitimada pela Organização da Libertação da Palestina, à qual o Hamas não pertence. Apenas este passo deixará claro perante os irredentistas de ambos os lados, os fanáticos que acham que a limpeza étnica é um preço aceitável a pagar por haver “entre o rio e o mar” apenas um estado, só de judeus ou só de palestinianos, que o mundo não aceita a sua visão genocida. Durante décadas, o reconhecimento do Estado da Palestina foi sendo sempre visto como uma visão a longo prazo por parte das principais chancelarias ocidentais. Chegou o momento de perguntar: se não agora, quando? Se não nós, quem? De preferência acompanhados, mas se necessário sozinhos, que 2024 seja o ano em que reconhecemos a independência do Estado da Palestina.
A crónica completa está no Expresso (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
Humanizar os direitos humanos
No passado 24 de dezembro, escrevi para o jornal Expresso um ensaio sobre os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Deixo um breve excerto deste ensaio que podem encontrar completo na Revista Expresso.
Passadas todas estas décadas, a Declaração Universal de Direitos Humanos dá por vezes parecenças de uma torre de marfim, ou de um obelisco intemporal que nos tivesse chegado já acabado, uma espécie de decálogo que em vez de entregue por Deus a Moisés fosse remetido à humanidade pela ética pura. Tratam-na assim alguns dos seus defensores. Não foi assim. A Declaração Universal foi feita por humanos, todos eles complexos, todos eles imperfeitos, todos eles contraditórios, que importa resgatar.
Mas é também crucial humanizar os direitos humanos, porque há outra tendência contrária — a que considera os Direitos Humanos como sendo um puro produto da hipocrisia política, uma farsa neocolonial imposta pelo Ocidente aos outros, um pedaço de papel que se arroga do universalismo quando não passa de um pretexto pronto a ser usado por qualquer imperialismo de turno. Não foi assim, e não é assim.
Em primeiro lugar, a Declaração Universal de Direitos Humanos não foi de todo uma obra de ocidentais. Se é certo que a presidente da Comissão que a redigiu foi Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama dos Estados Unidos da América, mais certo ainda é que as grandes forças motrizes por detrás do seu conteúdo foram intelectuais-diplomatas como o libanês Charles Malik, o chinês PC Chang, ou o judeu francês René Cassin. Por sua vez, estes trabalharam por cima do trabalho de levantamento filosófico feito pela UNESCO, que pediu a poetas, líderes espirituais e religiosos, juristas e filósofo de todos os países, regiões do mundo e culturas para responderem à pergunta de se havia uma base moral e filosófica para a ideia de direitos humanos nas suas diferentes tradições de pensamento. As respostas vieram de todo o mundo e foram entusiasmadamente positivas. A tradição ocidental, de origem francesa, dos “Direitos do Homem”, levou uma inflexão mais inclusiva através da proposta de emenda feita pela delegada indiana, Hansa Mehta, uma professora que havia estado presa por lutar pela independência do seu país, e que criou a expressão “direitos humanos”, que agora usamos. A Declaração Universal de Direitos Humanos foi obra de muitos homens e mulheres de todo o mundo.
Em segundo lugar, isso mesmo, mulheres. Não é verdade que a Declaração Universal tenha sido uma criação meramente utilitária de governo para usar a seu bem-prazer nas suas jogadas de política internacional. Os governos que saíram vencedores da IIª Guerra Mundial não deram de imediato atenção à ideia de criar uma carta de direitos para a humanidade, interessados que estavam em discutir esferas de influência e em arquitetar a Carta das Nações Unidas de maneira a garantir os seus poderes de veto. O único desses políticos que tinha revelado um interesse em criar novas “cartas de direitos” era Franklin Roosevelt, mas Roosevelt morrera em 1945. Foi o escândalo moral das primeiras descobertas dos campos de concentração e extermínio que despertou consciências e deu forças àqueles exilados e ativista que traziam bem alto o ideal dos “Direitos do Homem” desde o século XIX; dos tempos de Victor Hugo e do Caso Dreyfus. E foi muito em particular o trabalho de diplomatas de países fora do centro de poder a garantir que a Comissão de Direitos Humanos fosse criada. Aí tiveram particular importância as únicas quatro mulheres entre os mais de 850 diplomatas presentes — Minerva Bernardino, da República Dominicana; Wu-Yi Fang, da República da China (Taiwan); Virginia Gildersleeve, dos EUA; e a única de língua portuguesa, a cientista Bertha Lutz — que levaram a igualdade entre homens e mulheres à Carta da ONU, e que com diplomatas homens de países então considerados “periféricos”, como Carlos P. Romulo das Filipinas então recém-independentes, forçaram a formação da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Os EUA nomearam Eleanor Roosevelt para esta comissão por a acharem um “peso-pluma” da política, e não um peso-pesado como os senadores que conspiraram para a atirar para esse cargo.
Em terceiro lugar, havia perfeita consciência entre estes homens e mulheres de que a Declaração Universal era uma aproximação, e portanto um trabalho imperfeito. E mais (…)
O ensaio completo pode ser encontrado aqui.
Salvaguardar o Estado social
Abaixo a transcrição desta minha intervenção na Assembleia da República, na passada semana.
Nessa escolha muito clara que se coloca perante nós no próximo dia 10 de março, é muito importante que a parte progressista do nosso país, diga claramente que o Estado Social não é só igualdade. O Estado Social é uma condição de liberdade. E para isso, devo dizer, que desta parte de esquerda da política portuguesa, que é a família na qual eu me sinto bem, às vezes sinto também uma certa insatisfação. É que os vejo muitas vezes apenas do lado da defesa e da resistência, em nome do Estado social, quando a nossa posição deveria ser a de que o Estado Social não deve recuar nem um milímetro, mas que estamos sempre a tempo de o reinventar para o futuro. Senhora deputada Joana Mortágua não é preciso, com isso, abespinhar-se. Eu acho que quando o Bloco faz a luta pelos pelos cuidadores informais, e nós somos a metade esquerda deste país que tem tido maiorias sociológicas e eleitorais neste país. E sem maiorias em democracia, não se defende o Estado social, e não se reinventa o Estado social.
Não vale a pena pensar porque é que uma esquerda entrincheirada, dividida em pedaços, cada um na sua parte que o Estado social salva muito menos. Muito menos devemos pensar que é em minoria, em trincheiras, que o Estado social se reinventa. Porque quando nós dizemos, como o Bloco disse nos cuidadores informais, ou quando o LIVRE diz no alargamento do subsídio de desemprego às vítimas de violência doméstica, ou na experiência piloto da semana de quatro dias, ou dizemos na Carta dos Direitos do Cidadão Sénior, e quero senhora Ministra do Trabalho e Segurança Social que nos acompanhe nessa medida que vai ainda a votos na próxima semana aqui. Ou quando, senhor Ministro da Economia, dizemos que é preciso fazer aquilo que desde a Constituição não foi feito, que é uma lei para as cooperativas, para a autogestão, para o poder dos trabalhadores nas empresas. É todo o mundo do Estado social, da igualdade, mas também da liberdade para cada um, para cada uma de nós, que está aí por reinventar. E nós não ganharemos no próximo dia 10 de março, nós, a metade progressista deste país, se não formos com uma ideia de futuro, de reinvenção e de conquista para o Estado social, não ganharemos se formos apenas na trincheira da defesa e da resistência.
Vale eficiência
Uma das iniciativas aprovadas que LIVRE remeteu na Assembleia da República é o Programa 3C - Casa, Conforto e Clima. Partilho um dos componentes desse programa, convidando todos e todas a se candidatarem caso necessitem de apoio para aquecer as suas casas no inverno ou arrefecer no verão — esta medida irá melhorar o conforto dos cidadãos e cidadãs em relação ao clima.
O site do deco proteste oferece informações sobre o apoio e no site do Fundo Ambiental podem encontrar o formulário para a candidatura.
A escolha do próximo ano é entre aqueles que querem rasgar o contrato democrático ou rescindir o contrato social que nos une desde o 25 de Abril ou quem o queira preservar e reforçar. Do lado do LIVRE é muito claro: queremos renovar este contrato para o futuro. Atualmente enfrentamos desafios múltiplos e temos uma campanha rigorosa para as eleições legislativas antecipadas de 2024. Diante da ameaça da extrema-direita, o LIVRE propõe melhorias para o país na qualidade de vida, fortalecimento da democracia, defesa dos Direitos Humanos e combate às alterações climáticas. Mas, para crescer, o partido precisa de apoio das mais variadas formas, principalmente apoio financeiro para a campanha que se avizinha. Por isso, deixo aqui um link para quem puder contribuir para impulsionar e a ajudar o LIVRE a eleger o grupo parlamentar que tratará qualidade, mudança, força para a Assembleia da República e propostas que mudarão a vida dos portugueses, portuguesas e residentes em Portugal.
Podem contribuir aqui. (Muito obrigado!)
A nova sede do LIVRE no Porto já foi inaugurada!
No passado 15 de dezembro, o LIVRE celebrou a inauguração da sua sede no Porto. O espaço estava repleto de música, alegria, boa disposição e ideias promissoras para aprimorar a vida dos que vivem em Portugal. Jorge Pinto e Filipa Pinto fizeram as honras como cabeças de lista pelo Porto para as próximas legislativas antecipadas e partilharam ideias inspiradoras.
Leituras da semana
E como a carta vai longa, deixo duas sugestões de leituras:
Miguel Herdade: “O papel das universidades não é só formar para o mercado” — Almerinda Romeira
The mortal combat of foxes and hedgehogs; or why do eagles win? — Mateusz Stróżyński
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.