Isto não é um teste. Se fosse, estaríamos a chumbar
Carta semanal de Rui Tavares | 12 de julho de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos à πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
Hoje caminhamos pela ravina entre o poder judiciário e o político, e a desconexão de ambos com as exigências de uma cidadania democrática e transparente. No século XX, veremos como a invenção da rádio foi utilizada tanto como um meio de disseminação do ódio quanto como uma fonte de soluções. E encararemos o medo, o medo do medo — e a falta de futuro.
Não se esqueçam de conferir as leituras da semana. Temos um rato-robô e outro robô que é um táxi numa sociedade tecnológica. E uma entrevista que deveria ser a regra.
Aproveitem! E até a próxima!
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— E… No final da carta, partilho excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
Ah! Recordo que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita.
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Rui
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Isto não é um teste. Se fosse, estaríamos a chumbar
Os nossos antepassados não eram mais estúpidos nem mais cobardes do que nós. Provavelmente até estavam mais despertos para a possibilidade da tomada de poder autoritária do que nós estamos. Essa é menos uma camada de defesa para nós. Que eu saiba, o mesmo exercício nunca foi tentado para Portugal. Por aqui, continuamos sempre a empurrar com a barriga da consciência e a acreditar que as coisas nunca chegam por cá, como se não tivéssemos passado praticamente metade do século passado com a ditadura mais longa da Europa. Mas há como fazer este raciocínio com dados tão objetivos quanto possível. Um dos dados de partida do estudo dos professores Pech e Platon, que citei acima, é o relatório anual comparativo dos sistemas judiciais da União Europeia, publicado pela Comissão Europeia. Portugal é um dos países com pior classificação em relação a critérios como a morosidade da justiça, falta de modernização ou dificuldade de acesso dos cidadãos. Mas isso nem é o pior. Para o resto, assumamos a subjetividade: quem ouviu esta semana a entrevista da Procuradora-Geral da República pode ser desculpa por chegar à conclusão de que aqui não haveria grande cooptação a fazer. A diferença de cultura entre o exercício de poder no sistema judiciário e no poder político é gritante, e entre ambos e as exigências de uma cidadania digna do século XXI, mais ainda. Um poder que acha que a sua lógica não tem de ser justificada perante o cidadão comum, e que confunde a necessidade de comunicar e ser transparente e responsabilizado com ter contratado mais assessores de imprensa para o gabinete, é um poder com mais capacidade de entendimento com uma liderança política democrática ou autoritária?
Leiam a crónica completa no Expresso desta semana.
A telefonia do totalitarismo ou a rádio de Roosevelt?
Ontem como hoje, muito políticos tentaram e falharam no combate ao medo. O medo é um sentimento monopolista: quando temos medo, não conseguimos pensar em mais nada. E foi no excitar do medo através de um meio de comunicação de massas que os fascistas se tornaram diabolicamente eficazes.
Mas talvez apenas no caso de Roosevelt tenhamos o contraexemplo perfeito daquilo que é o antídoto do medo em pleno funcionamento. Esse antídoto é o desejo. Quando um povo deseja algo — a estabilidade das suas finanças, a diminuição do desemprego, um estado de nova concórdia ou harmonia social, a criação de novos direitos — e há quem consiga explicar de forma acessível quais são os passos a dar para conquistar esse objeto de desejo político, é possível distrair as pessoas dos seus receios até acabarem por esquecê-los quando se concentram naquilo que querem conquistar em conjunto. Foi essa a magia que Roosevelt conseguiu operar através das suas conversas à lareira. E o facto de elas terem sido transmitidas na rádio — o mesmo canal que os intelectuais dos anos 1920/30 acreditavam ser tão consubstancial ao fascismo quanto hoje acreditam que as redes sociais são consubstanciais ao populismo autoritário — faz-nos ter esperança numa coisa: ao contrário do que se diz, o meio não é a mensagem.
Podem ler o artigo completo na Revista Expresso.
O medo, o medo do medo, e a falta de futuro
Há 22 anos Jean-Marie Le Pen passou à segunda volta das eleições presidenciais francesas, a esquerda juntou-se ao centro e à direita para fazer reeleger o conservador gaullista Jacques Chirac, que na primeira volta tinha tido a preferência de menos de um quinto dos franceses, com o voto de mais de quatro em cada cinco dos franceses que foram às urnas. Desde então, a França tem vivido com dois tipos de medo. O medo fomentado pela extrema-direita em relação à imigração, à diferença e à mudança. E o medo desse medo — de que a extrema-direita a cada eleição se aproxime ainda mais do poder, até ao dia em que o conquiste e já não o largue. É esse duplo medo que tem dominado a política e a sociedade francesa e que agora parece ter chegado ao seu clímax. É possível imaginar que o sobressalto republicano de 2002 tivesse dado lugar a outro tipo de política. Afinal, a França vivia então em coabitação entre o centro-direita de Chirac — que, é bom não esquecer, foi o presidente europeu que mais se opôs à aventura irresponsável da Guerra do Iraque em 2003 — e a “esquerda plural” de Lionel Jospin, um dos primeiros-ministros mais sérios e confiáveis que a França já teve. As duas famílias políticas principais da França teriam de ser capazes de oferecer visões alternativas do futuro aos franceses que permitissem mobilizar a sociedade e estabilizar a sua democracia. Como sabemos, não foi nada disto que aconteceu. A normalização da extrema-direita foi a estratégia escolhida por Sarkozy, que mimetizou o discurso securitário e xenófobo na esperança de esvaziar a Frente Nacional, e acabou esvaziado por ela. O socialista Hollande foi desprovido de imaginação política, quer na política nacional, quer na política europeia. E Macron pareceu um quase seu oposto, frenético nas suas apostas arriscadas e nas suas mudanças de táticas, sem ter sido capaz de propor um futuro desejável para os franceses. Pode dizer-se que os franceses têm dos melhores rendimentos da Europa, um estado social dos mais generosos e pensões de reforma mais cedo do que a maior parte dos outros europeus. É por isso mesmo que a falta de um futuro os torna ainda mais temerosos de perderem o que já têm. Perante isto, o campo democrático e republicano continua a jogar apenas um jogo de resistência — e de desistência. Desistência que agora é necessária para barrar uma maioria absoluta à extrema-direita. Mas isto não é vida, e até que apareçam protagonistas que o entendam a política francesa será sempre uma catástrofe à espera de acontecer.
Na Revista Expresso do dia 04 de julho de 2022
Leituras da semana
Migrações. “A exceção ucraniana devia ser a regra” — Teresa Pina
Teresa Pina, politóloga e autora da tese “Tensão Entre Supranacionalismo e Intergovernamentalismo: Uma análise do impacto da crise europeia de refugiados de 2015 sobre a política pública de migração e asilo da União Europeia”, doutorada pelo ISCTE, fala sobre a crise europeia de refugiados de 2015 e o seu impacto nas políticas de migração e asilo da União Europeia, numa perspectiva que aborda tanto o passado quanto a atualidade.
Want to make robots more agile? Take a lesson from a rat. — Anne J. Manning
Este artigo analisa a criação de um rato virtual com um cérebro artificial, criado por neurocientistas de Harvard e o laboratório DeepMind da Google que desenvolveram um modelo digital realista de um rato, usando dados de movimento de ratos reais. A rede neural artificial, o "cérebro" do rato virtual, foi treinada para controlar o corpo num simulador de física chamado MuJoco. Os resultados mostraram que as ativações na rede de controle virtual previam com precisão a atividade neural dos cérebros de ratos reais realizando os mesmos comportamentos.
A driverless car hits a person crossing against the light in China — The Associated Press
Este é um interessante artigo sobre um incidente, ocorrido na cidade de Wuhan, China. Um “robô-táxi”, ou seja, um carro autónomo que transporta passageiros, atropelou um peão, e nas redes sociais apoia-se o fabricante, pois o peão atravessava fora da passadeira de peões. Especialistas alertam para limitações da tecnologia ao lidar com comportamentos não convencionais dos humanos, como a violação de leis de trânsito por peões ou veículos.
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Telegram
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
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