Não me obriguem a ir para a Praça do Comércio gritar
Carta semanal de Rui Tavares | 26 de julho de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos à πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
E se eu vos dissesse que são proprietários de um tesouro, que provavelmente passam por ele, talvez até todos os dias, e que nunca tiveram oportunidade de o conhecer? E se acrescentasse que esse tesouro vos está a ser usurpado? Acompanhem-me até à Praça do Comércio.
Falamos também de cidades-livro, como Lisboa, e cidades-cebola, como São Petersburgo e de uma antiga fábrica de chocolates.
Ah! E viajaremos por mil anos de história em sete volumes ou num livro apenas.
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Recordo que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita. — Se quiserem saber mais sobre o nome desta carta, vejam aqui.
(Quem não quiser receber este email, é só clicar em "unsubcribe" abaixo, ou enviar mensagem a solicitar a retirada da minha lista de contactos.)
Rui
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Não me obriguem a ir para a Praça do Comércio gritar
Gastaram-se já neste país rios de dinheiro a fazer estádios de futebol, pavilhões multimodais e outros edifícios que tais, uns bons e outros maus. E nunca se olhou para o que já existe e que de nós é sonegado todos os dias. Nunca país onde estas coisas são levadas a sério, isto nunca aconteceria; num país em que isto acontece, nem é tema.
Mas alvíssaras! Parece que há uma luz ao fundo do túnel. No quadro da mudança de ministérios para o edifício que foi construído para ser sede da Caixa Geral de Depósitos, há notícias de que o Ministério da Agricultura é precisamente um dos contemplados. Sendo assim, ficarão libertos uma parte dos espaços de uma das alas da Praça, e pode dar-se-lhes outro uso. Mas qual? Segundo consegui apurar, o Ministério sairá dali para ser substituído por…
…preparem-se…
…outro ministério. Sim. O Ministério da Agricultura sai para ser substituído pelo Ministério da Administração Interna, que por sua vez libertará outros espaços na Praça (...). Porque não houve nem há debate público sério sobre este assunto? A Câmara Municipal de Lisboa aprovou por unanimidade uma resolução que apresentei sobre o tema, já há mais de dois anos, mas entretanto nenhuma ação tomou. Indo para o outro lado da praça, como pode um Ministério das Finanças de um país moderno ocupar toda a ala nascente, onde não tem as melhores condições de trabalho, sem que haja planos para o tirar dali? Houve dinheiro do PRR para tudo, mas não para isto? Será possível que um dia, depois de muita opacidade e algum improviso, tudo aquilo vá acabar sendo pasto para os hotéis de charme e o turismo de baixa qualidade? Ali mesmo um letreiro anuncia “o WC mais sexy do mundo”. A sério que não podemos melhor do que isto?
Leiam a crónica completa no Expresso desta semana.
Cidades-livro e cidades-cebola
Enquanto estive em São Petersburgo, perguntaram-me muitas vezes sobre as semelhanças entre São Petersburgo e Lisboa. As coincidências são as seguintes:
São Petersburgo é uma cidade planificada, construída no século XVIII. Lisboa é uma cidade reconstruída no século XVIII, após o terramoto, e parcialmente planificada na Baixa.
Lisboa foi reconstruída depois de uma catástrofe inesperada; São Petersburgo sofreu com catástrofes inesperadas (no caso, inundações violentas e repentinas, provocadas pelo degelo do Báltico) depois da sua construção. A historiadora da arte Olga Roussinova, da Universidade Europeia de São Petersburgo, descobriu que as gravuras dos desastres de Lisboa foram reutilizadas mais tarde para representar os desastres de São Petersburgo, mudando as legendas e pouco mais.
Ambas as cidades vivem na sombra de déspotas esclarecidos: em São Petersburgo o seu fundador Pedro, o Grande; em Lisboa o seu “reconstrutor”, o Marquês de Pombal.
As diferenças — entre Sul e Norte, calor e frio, planície e colinas — também são muitas. Mas as semelhanças são suficientes para justificar as perguntas, e punham as pessoas a pensar.
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Ao responder, eu concentrava-me numa praça: a Praça do Comércio, em Lisboa; e a Praça do Senado, em São Petersburgo. Ambas possuem a mesma função, que é a de receber os visitantes que chegam de barco. Ambas têm, por isso, uma estátua do monarca a cavalo, que deve receber com pompa esses mesmos visitantes.
Ao responder, eu dizia o seguinte: a semelhança entre ambas as cidades é que ambas são construídas sob a metáfora de um livro. Quando se inaugurou a estátua equestre da Praça do Comércio, em 1775, dizia-se que a estátua era como “a página de rosto de um livro”, onde costuma estar o nome do autor. O livro era a cidade, e o seu autor era o rei.
Cidades como Lisboa, São Petersburgo, Veneza (ou, embora menos, o Rio de Janeiro após a mudança da corte para o Brasil) permitem isto. Ao chegar-se de barco à cidade, entrar directamente no centro. E depois de começar pelo centro, proceder para o resto da cidade.
Isto permite um maior controle aos “autores” destas cidades. A entrada é como uma encenação; como uma ópera, que estava na moda naquele tempo. A praça onde se chega — do Comércio em Lisboa, do Senado em São Petersburgo — é como um palco. Toda a chegada é cenograficamente preparada.
Mas se a cidade é uma peça de teatro, ela pode ser também um livro — no século XVIII, estas duas formas culturais, a peça de teatro e o livro, eram os meios de comunicação de massas da população europeia —. Começas por ver a capa do livro, a sua “página de rosto”, na praça por onde chegamos. E depois as ruas, as outras praças e as avenidas são como páginas e capítulos desse livro.
Mas nem todas as cidades são assim — nem todas podem sê-lo —.
Podem ler o texto completo em ruitavares.net
Agora, agora e mais agora
Já saiu no Brasil o Agora, agora e mais agora num único livro.
De 950, ano em que morre Al Farabi, até 1948, ano da Declaração Universal de Direitos Humanos — e do 1984 de George Orwell. Mil e dois anos. Vá, mil e setenta e seis se considerarmos o ano de nascimento de Al Farabi, no ano de 872. Nestas coisas não dá para ser muito exato. É um livro sobre o tempo que ajuda a pensar o tempo.
No livro falo de ideias que não foram sempre — e por vezes não foram nunca — dominantes no seu tempo. Os autores de que falo, por vezes tiveram ideias com séculos, como se fosse a primeira vez. Outras vezes usaram-nas como se não fossem suas, e transformaram-nas. De certa forma, as ideias nunca são exatamente as mesmas ideias: tal como não é possível banharmo-nos no mesmo rio duas vezes, também a ideia de dignidade humana em Pico della Mirandola em 1490 não é exatamente a mesma que a ideia de dignidade humana na constituição da República Federal da Alemanha em 1949. Mas se filosoficamente não é possível banharmo-nos duas vezes no mesmo rio, como se diz que argumentava Heraclito, na verdade o que Heraclito disse foi um pouco diferente:
«ποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν, εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμεν.»
«Mergulhamos e não mergulhamos no mesmo rio duas vezes. Somos e não somos os mesmos.»
Se acompanharem o livro, poderão concluir que o tal rio, ora subterrâneo, ora à superfície, tem duas correntes principais: uma leva de Al Farabi a Averróis e Maimónides, e destes a Dante, a Boccaccio e a Pico della Mirandola, e daqui a Thomas More, Erasmo de Roterdão e Margarida de Navarra no século xvi, ou seja, da Idade Média ao Renascimento. E as nossas segundas três memórias levam-nos do Iluminismo à Europa do Caso Dreyfus e daqui às guerras e à Declaração Universal dos Direitos Humanos no século xx.
Podem encontrar aqui o livro com a versão brasileira e aqui a coleção em sete volumes com a versão portuguesa.
A Fábrica de Chocolate de Sapadores
Recentemente, a CML votou uma proposta que iria converter o terreno da antiga fábrica de chocolates Favorita num condomínio de luxo. A proposta foi rejeitada pelo LIVRE e oposição, mas a destruição deste edifício é um exemplo dos crimes que foram acontecendo contra a cidade.
Por acaso, aquele espaço faz também parte das minhas memórias pessoais. Foi o primeiro lugar onde morei quando saí de casa dos meus pais, aos 20 e poucos anos. Sempre fui daquela colina; cresci do outro lado dela, estudei na escola ali ao lado e depois fui morar para Sapadores.
Era uma fábrica de chocolate, que os patrões já tinham fechado. Mas que os operários mantinham em funcionamento para não se estragarem as máquinas. Sábado de manhã, nas ruas circundantes, cheirava a chocolate porque os operários não deixaram a fábrica fechar.
Os painéis de azulejos mostravam vários ciclos do cultivo, da colheita, e do processamento do cacau, e eram absolutamente únicos e maravilhosos. Era daqueles recantos em Lisboa cada vez mais raros, mas que ainda fazem da nossa cidade uma coisa que (às vezes) é para lá da poesia.
Parecia que se entrava noutra dimensão. Num bairro operário da cidade de Lisboa, de repente, as ruas a cheirar a chocolate. Os maravilhosos painéis de azulejos foram criminosamente destruídos há mais de 20 anos.
Qualquer pessoa que pudesse viajar no tempo e ver o que ali estava e como deixámos que alguém destruísse parte daquilo que faz o coração da própria cidade, ficaria chocada, independentemente da cor política.
Não teria sido difícil fazer ali um projeto social, cultural e de habitação, para todos. Em vez disso, a ganância levou à destruição.
Esta proposta acabou chumbada por incumprir grosseiramente os regulamentos no que toca à volumetria da construção, usando também para isto subterfúgios de créditos de construção por construção de estacionamento a mais.
Na mesma reunião vieram 3 propostas de novos hotéis, dois deles no Hospital do Desterro, que mostram o mesmo tipo de insensibilidade perante o património público, mas também o descaso, negligência e destruição da cidade que julgávamos que já tinha ficado no passado.
Leituras da semana
Comunicado da companhia teatral Artistas Unidos sobre a sua saída do Teatro da Politécnica.
Peasants, Power, and the Art of Resistance — James Scott
James Scott, contribuiu significativamente para o estudo sobre a resistência, especialmente em grupos de camponeses. Faleceu no dia 19 de julho de 2024.
How Kamala Harris’s Immigrant Parents Found a Home, and Each Other, in a Black Study Group — Ellen Barry
O artigo é sobre como os pais de Kamala Harris, Donald Harris e Shyamala Gopalan, se conheceram e encontraram um sentido de pertença num grupo de estudo sobre a questão racial em Berkeley.
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Telegram
É por aqui o meu canal no Telegram: https://t.me/ruitavarespt . Vemo-nos por lá!
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
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