Nem todos os países têm a sorte de ter um golpista incompetente
Carta semanal de Rui Tavares | 29 de novembro de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
No fundo a carta de hoje é uma carta sobre “sorte” (mas nem sempre da maneira convencional). A "sorte" aqui se apresenta de formas variadas: a sorte do Brasil em ter um golpista incompetente, a falta de sorte da Hungria em ter o seu oposto. Também veremos se conseguiremos evitar um golpe por aqui, quando, por entre palavras cortadas, se negam denúncias de ameaças no parlamento português.
E para a nossa sorte, temos boas leituras para nos acompanhar nesta jornada.
Venham comigo!
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Recordo que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita. — Se quiserem saber mais sobre o nome desta carta, vejam aqui.
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Rui
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Nem todos os países têm a sorte de ter um golpista incompetente
Quase que consigo ouvir Viktor Orbán falar com Jair Bolsonaro e dizer-lhe, num cerrado sotaque magiar, "não é assim que se faz, hülye” (trata-se de uma palavra húngara, que não vou traduzir). “Para dar um verdadeiro golpe, seu idióta” — também uma palavra húngara, sinónimo da anterior, e que também não vou traduzir — “é preciso primeiro uma nova lei da imprensa, depois cooptar os tribunais e enchê-los de juízes nossos, e finalmente alterar a lei eleitoral”. E depois é que se pode começar a fechar jornais e expulsar universidades e, aproveitando as leis de emergência da pandemia, ganhar o direito de nomear por decreto representantes do governo para os conselhos de administração das grandes empresas privadas (sim, das privadas, não é engano).
É assim que funcionou na Hungria. A primeira fase, a mais importante, demorou dezoito meses. E arrisco-me a dizer que assim funcionaria em muitos dos nossos países, cada qual com as suas vulnerabilidades e pontos fracos. Há dois anos, um estudo sobre a resistência do sistema jurídico francês a um potencial choque autoritário, coordenado pelos Professores Laurent Pech, da Universidade Middlesex em Londres, e Sébastien Platon, da Universidade de Bordéus, chegou à conclusão de que o sistema jurídico francês duraria mais ou menos o mesmo tempo.
E nós? Quantos meses duraríamos? Teríamos a sorte de ter golpistas incompetentes como Bolsonaro? Ou inteligentes como Orbán? Queremos descobrir?
👉 No Expresso desta semana podem ler a crónica completa
Uma ideia de cento e doze anos para acabar com o vício das bets
Como um esquecido deputado português e cônsul no Rio de Janeiro se propunha ensinar a apostadores a poupa
Em junho de 1911, em Portugal, acabado de entrar no parlamento republicano, Fernão Botto Machado estava também preocupado com o vício das apostas lotéricas entre os seus compatriotas. As famílias mais pobres não conseguiam poupar e ganhavam comportamentos obsessivos e de dependência; a perda de dinheiro levava a depressões, alcoolismo e até suicídios; e as políticas sociais, que o nosso voluntarioso deputado defendia, corriam o risco de não ter tração se o dinheiro repassado para os trabalhadores acabasse desperdiçado em jogos de azar. Por outro lado, Fernão Botto Machado era um libertário e não queria proibir as pessoas de gastarem o seu dinheiro como bem entendessem. Foi então que pensou numa solução engenhosa, que verteu para um sucinto projeto de lei com dois objetivos principais. Em primeiro lugar, a casa lotérica seria obrigada a criar uma conta-poupança no nome do apostador. Em segundo lugar, metade do dinheiro apostado seria guardado e devolvido ao mesmo após cinco anos, acrescido de juros. “O pensamento deste decreto resume-se nisto”, sentenciou ele: “Quem não poupa, não joga”. Acrescentando: “o jogador verificará pelos seus próprios olhos… que as somas que consumiu no jogo lhe desapareceram; enquanto que, pelo contrário, as quantias que paralelamente foi obrigado por lei a depositar para poder jogar, essas, não só as não perdeu, mas até lhe frutificaram com o vencimento dos juros”.
👉 Lê na Folha de São Paulo .
Ameaças na Assembleia da República
É frequente o Presidente da Assembleia da República deixar o líder do CH usar o início dos trabalhos para uma das suas arengas. Quando a Isabel Mendes Lopes denunciou a apologia de crimes de guerras e ameaças do mesmo, não a deixou terminar. Uma parcialidade flagrante e reiterada.
A próxima Presidência da República
A próxima Presidência da República precisa de alguém firme na defesa do Estado de Direito e da democracia. O futuro ou a futura presidente deve ter a capacidade de defender consequentemente esses valores — breve excerto do comentário na Sic Notícias.
Leituras da semana
A liberdade de imprensa : carta aberta e minuta extra-processal, enviadas aos srs. Juízes da Relação de Lisboa, a proposito do processo instaurado sobre a penultima apprehensão do jornal republicano "O mundo" — Fernão Botto Machado.
O seguro obrigatório dos trabalhadores (1911) — Fernão Bôtto-Machado Disponível em pdf
The Law of Peoples, distributive justice, and migrations — Seyla Benhabib
Telegram
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso.