Para se perder uma democracia, basta tê-la — πολύτροπον - "de muitos caminhos"
Carta semanal de Rui Tavares | 17 de novembro de 2023
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Esta semana: o fim do Império Romano (não é esse, é outro), Portugal dos pequenitos, salvar o 25 de Abril, pergunta ao governo e os 10 anos do LIVRE.
Na próxima carta, teremos um artigo que escrevi e saiu hoje na Revista do Expresso sobre “A outra guerra da Crimeia (não essa, a outra ainda)”. Se não quiserem esperar pelos excertos da próxima edição, podem encontrar o artigo aqui.
— E, no final da carta, partilho excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
(Quem não quiser receber este email, é só clicar em "unsubcribe" abaixo, ou enviar mensagem solicitando a retirada da minha lista de contactos.)
Um abraço,
Rui
Quando sairemos do Portugal dos pequenitos?
"Concentremo-nos num segundo comunicado do Ministério Público, divulgado há precisamente uma semana. Em poucas linhas, esse comunicado diz que a investigação sobre o Primeiro-Ministro não poderá ser concluída mais expeditamente pelo Supremo Tribunal, porque terá de esperar o tempo que for necessário (meses? anos? décadas?) para que a restante investigação se conclua. Parafraseio, porque o importante é o seguinte: essas poucas linhas vêm assinadas, não pelos investigadores do caso, não pela Procuradora-Geral da República, mas singelamente assim: “o gabinete de imprensa”.
Isto pode parecer um pormenor, mas aos meus olhos de historiador saltou como um enorme sinal de alerta. Decisões com profundíssimas consequências sobre os destinos de países e regimes, assinadas sob o anonimato de uma entidade obscura (o “Comité de Segurança Geral e de Vigilância”, a “Comissão de Salvação Pública”, o “Gabinete de Imprensa”) não são próprias de uma democracia e de uma sociedade madura.
Por mais que as mensagens sejam difíceis de explicar ou duras de engolir, manda o sentido de responsabilidade que alguém dê a cara e o nome por elas, e que seja alguém que exerça a autoridade pública através da instituição que dirige. Enquanto deixa que assessores anónimos digam através de um “gabinete de imprensa” que vamos ficar décadas sem perceber o que mais nos interessa perceber, há alguém que deveria falar e não fala. Quem não fala assim é a Procuradora-geral da República, Lucília Gago."
Excerto da minha crónica no Expresso (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
Os Cem Anos do Fim do Império Romano — E Nós
Parece há uma eternidade, mas há uns dias eu estava a escrever sobre outras coisas. Para quem quiser desenjoar das novidades velhas pode ler sobre velhas novidades neste meu artigo na Revista do Expresso da passada semana.
Cumprida a primeira missão deste texto — explicar como é possível haver “romanos” mais de 1500 anos depois da queda do “nosso” Império Romano — falta o mais difícil: explicar por que razão é isso importante para a atualidade.
Pensemos no que se passa em Israel e na Palestina. É sabido que a província romana da Judeia foi extinta e transformada na Palestina em 132 d.C., no fim das guerras romano-judaicas. Desde então, essa província foi por vezes subdividida (em Palestina Primeira, Segunda e Terceira) mas nunca mais deixou de existir com esse nome. Os seus habitantes eram principalmente muçulmanos, como a maioria dos habitantes deste Império “Otomano”; mas muitos eram cristãos, judeus (entre 3% e 6%) e de outras religiões, como os drusos. Entre os habitantes de Israel, hoje, há certamente muitos sobreviventes do Holocausto na Europa; mas há também muitos (e sobretudo) cidadãos oriundos dos países que se formaram após o desmembramento do Império Otomano, do Iraque ao Iémen, e onde havia comunidades judaicas numerosas, populosas e milenares. Esses milhões de judeus não estão fora da sua região de origem; a sua casa não deixou de ser o Médio Oriente.
Mais importante do que isso, é preciso notar que, ao contrário dos reinos e países e nações que saíram do “nosso” Império Romano (do Ocidente), e que se foram formando durante a Idade Média, a maior parte dos povos e nações do “outro” Império Romano (do Oriente, primeiro “bizantino” e depois otomano) viveram ininterruptamente numa ordem imperial durante dois milénios ou mais, desde a Antiguidade até anteontem à noite — ou, dizendo melhor, até ao início do século XX. Deve ser raríssimo, mas não é impossível haver gente velhinha ainda viva que tenha nascido no último Império Romano que se reclamou desse título.
Porque, na verdade, o sultão otomano não foi o único a dizer de si mesmo que era “César dos Romanos”. O kaiser do Império Germânico usava o mesmo título; o do Império Austríaco e Austro-Húngaro também. E os czares do Império Russo não só também usavam o mesmo título (T’sar é a versão eslava de “César”) como entendiam que após a queda de Constantinopla, haveria lugar ao estabelecimento de uma “Terceira Roma”, que seria Moscovo. Como tal, Moscovo teria o direito de “proteger” todas as minorias cristãs sob domínio otomano, o que explica as ambições russas de ontem (e de hoje?) sobre o Mar Negro, os Balcãs, a Síria e até a Terra Santa.
Para entender o mundo, é preciso vê-lo de um lado e do outro da história. Virado do avesso, esse mundo em que o Império Romano acabou só há 100 anos é aquele no qual, após a I Guerra Mundial, houve uma corrida ao reconhecimento como Estado-nação. Os perdedores dessa corrida — os arménios, os curdos, os judeus, os palestinianos — foram as vítimas dos genocídios futuros, e às vezes as vítimas das vítimas. De Nagorno-Karabakh a Gaza, esse mundo que é também dos ataques terroristas, dos crimes de guerra e das limpezas étnicas está mais ativo e intenso do que nunca.
Aqui podem ler o texto completo na Revista Expresso.
Crise de regime, democracia, Europa e direitos humanos
Esta semana estive na SIC Notícias para uma conversa franca sobre o futuro do país e da Europa, do que podem esperar do LIVRE para os próximos anos e da importância — enquanto cidadãos — de salvarmos o regime democrático.
(…) Para se perder uma democracia, basta tê-la. E isso pode acontecer-nos, nomeadamente se nós deixarmos que, no meio desta incerteza toda que temos, é natural as pessoas serem desconfiadas, o que não é natural é aproveitarem-se da nossa desconfiança, do nosso “pé atrás”, por assim dizer, para o que seria uma autêntica vigarice política que seria usar as regras da democracia para subverter a própria democracia. Esta democracia foi conquistada a duríssimas penas pelos nossos pais, pelos nossos avós, por gente que foi presa, por gente que foi assassinada e torturada para termos o 25 de Abril. E nós não podemos deixar que ele nos escape das mãos, até porque foi o melhor regime, historicamente, que tivemos. Vale a pena salvá-lo, e é ele que nos dá uma porta de entrada para aquele país que nós todos desejamos: um país dinâmico, um país que é democrático, que é europeu, que é muito inclusivo, que não deixa ninguém para trás. Isto consegue fazer-se. Outros países conseguiram fazer. E nós havemos de conseguir fazer, mas não podemos ceder ao desespero, não podemos ceder ao “todos contra todos”. Não podemos ceder ao que se está a pré-anunciar que é irmos ter uma campanha eleitoral que vai durar quatro meses — demasiado tempo em meu entender — e que, se nós deixarmos, vai ser uma campanha sujíssima e vai ser uma campanha baixíssima.
Podem ver a entrevista completa aqui.
Pergunta ao Governo
Estudantes a ser detidos pela polícia numa universidade é perturbador e remete para outros tempos. Através de uma pergunta ao governo, solicitarei esclarecimentos ao Ministério da Administração Interna sobre o que motivou a detenção e a aparente desproporção dos meios usados.
10 anos do LIVRE
Ontem, 16 de novembro, comemorámos o 10º aniversário do LIVRE! Um marco significativo que representa uma década de dedicação à construção de um país mais democrático, sustentável, solidário e verdadeiramente LIVRE.
A festa aconteceu no Auditório da Biblioteca Orlando Ribeiro, em Lisboa. A noite foi preenchida com alegria e boa música — com a atuação de Luiana Abrantes, Mbye Ebrima, Mano Skilo, Mick Trovoada e Renato Chantre.
A presença de todas e todos foi fundamental para tornar este evento ainda mais memorável.
E vamos continuar! Contamos com a vossa participação e contribuição para a construção do país que almejamos.
E aqui está o meu discurso no 10º aniversário do LIVRE.
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.