Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
A carta de hoje traz lições de um homem que nunca desistiu, uma reflexão do passado sobre a mudança que cabe como uma luva no nosso presente. Ainda, visitaremos dois estados brasileiros. Um deles leva-nos a uma viagem linguística que nos convida a explorar as riquezas do português e revela como a nossa língua comum serve de ponte entre diferentes regiões e épocas. No outro, vemos o lançamento do Agora, agora e mais agora em português do Brasil.
Espero que gostem! E obrigado por lerem πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
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Recordo que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita. — Se quiserem saber mais sobre o nome desta carta, vejam aqui.
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Rui
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Soares e a lição da alegria
Para todos nós, que vivemos num mundo que é de facto deprimente e que por vezes nos deprime, não devemos ficar apenas a ansiar por ter uma configuração psicológica diferente. Cada um é como é. Mas devemos perceber que sem ação, e sem ação política, só conseguiremos garantir que as coisas fiquem tão más como estão, ou pior. A vida de Mário Soares está cheia de lições políticas, que seriam impossíveis de resumir numa só crónica, e com as quais podemos concordar ou discordar. Lições sobre intuição e talento em política, sobre coragem e risco, sobre pequenos erros e grandes acertos, dos quais o mais importante foi Soares ter percebido a forma essencial do que os portugueses maioritariamente queriam: um país com uma democracia de tipo ocidental, com um vincado cunho social, e firmemente ancorado ao projeto europeu. Mas a lição política maior que eu acho que toda a gente precisa de ouvir nesta altura é esta. Sem otimismo, não podes esperar que ninguém se junte a ti, e sem mobilização não há vitórias, e sem vitórias não há alegria em política. E não se pode fazer política sem alegria.
👉 No Expresso desta semana podem ler a crónica completa
O problema é que a mudança mudou
O que um soneto de Camões nos ensina sobre os medos de hoje
"Pensamos muito nas coisas que mudam, mas pensamos pouco na própria mudança em si. Mas fazemos mal, porque este tema aparentemente vago e teórico tem sérias consequências práticas. É que na verdade, não há só uma mudança, mas vários tipos de mudança. A alguns tipos de mudança, gostando ou não, estamos acostumados como humanos que somos. São eles a mudança constante, incremental ou cíclica. A outros tipos de mudança temos resistências emocionais, como no caso da mudança irreversível. E outros ainda — como é o caso da mudança exponencial — são difíceis até de abarcar cognitivamente. O cérebro humano recusa-se a querer compreender; ficamos perplexos e desorientados; perdemos a confiança nas lideranças, revoltamo-nos e queremos voltar ao passado, mesmo sabendo que é impossível. Como é evidente, estamos a viver um desses momentos. Não só a mudança mudou, como há várias mudanças que mudaram ao mesmo tempo, e todas elas de tipos diferentes. A pandemia trouxe uma mudança de tipo exponencial: o cérebro tinha dificuldade em aceitar que a infeção de um indivíduo seria amanhã de dez, cem, mil, um milhão e assim sucessivamente. Mas o desenvolvimento da inteligência artificial traz também uma mudança de tipo exponencial, e ainda estamos só no início. A mudança trazida pelas alterações climáticas é disruptora, brutal e provavelmente irreversível. Mudanças trazem outras mudanças: migrações em massa, guerras, colapso institucional, quem sabe mais o quê? Um dos nossos maiores problemas hoje é que as pessoas têm medo da mudança, os reacionários faturam com isso, e os democratas e progressistas não sabem explicar como prever, gerir e beneficiar dessa mudança. Quem souber fazê-lo, em cada uma das áreas que listei acima, encontrará o caminho para sossegar a opinião pública e juntar as vontades coletivas. Até lá, o medo da mudança gerará monstros."
👉 Lê na Folha de São Paulo
O homem que nunca se deixou abater
Crónica publicada no jornal Público em 7 de janeiro de 2017
Nos primeiros dias de 2006 um telefonema de um amigo a precisar de ajuda levou-me à última campanha presidencial de Mário Soares. Havia pouca gente na sede. O candidato andava pelo país. As sondagens eram más. Fui ficando para fazer o que pudesse. Um dia — creio que era o sábado de reflexão antes do voto — abro a porta para entrar numa reunião e estava lá Mário Soares, que eu nunca tinha conhecido antes.
A certa altura, antevendo os maus resultados do dia seguinte, disse-nos algo assim: “Vocês não se preocupem comigo, nem pensem que eu vou andar abatido a partir de segunda-feira. Na verdade, eu nunca estive deprimido um único dia da minha vida. Nem sei o que é isso.”
A história impressionou-me não só pelo seu lado pessoal — nessa altura, Mário Soares era uma figura evidentemente mítica da nossa democracia, Presidente duas vezes e reeleito com 70% dos votos, que não precisaria de andar numa campanha eleitoral com muitas probabilidades de correr mal — mas porque me perguntei desde então se esta característica de Mário Soares, tal como ele a descreveu, não nos dará alguma chave para a interpretação do seu percurso político. Como poderia alguém que viveu desde os dois anos de idade num regime que abominava e que conheceu a repressão e a censura, a prisão, o degredo e o exílio durante os 48 anos seguintes nunca ter estado abatido? Provavelmente a pergunta está mal feita: é porque nunca esteve abatido que ele conseguiu não só gerir a sua história pessoal de resistência como fazer algumas das escolhas políticas estratégicas que ajudaram a determinar também a nossa história coletiva.
Mário Soares era guiado por um otimismo inato em relação à humanidade e a Portugal, apesar de ter visto a humanidade massacrar-se e o nosso país vicejar na miséria e na ignorância durante os melhores anos da sua vida. Talvez tenha sido esse otimismo que lhe permitiu lançar-se com uma vintena de camaradas na construção de um partido político nos últimos anos da ditadura e propor para Portugal, já em democracia, uma visão europeia que — longe de ser consensual — foi suficientemente mobilizadora para conquistar uma maioria de portugueses.
Dito assim, parece linear. E não foi. Mário Soares continuou a precisar de não se deixar abater quando foi um primeiro-ministro impopular ou quando partiu para uma campanha presidencial — a primeira — com sondagens que desencorajariam qualquer outro. Mas o “não se deixar abater” que para nós pode ser um esforço seria para ele como respirar.
Um exemplo: um dia Soares contou-nos uma história hilariante sobre uma confusão entre ele ter na sua posse uma bomba para a asma (de que tinha sofrido em jovem) e a polícia acreditar que ele tinha uma bomba verdadeira. Enquanto ele prosseguia, nós ríamos à gargalhada. No meio do riso e do choro, nem reparei que era uma história sobre ser espancado por polícias na 11.ª esquadra de Lisboa. Até numa história dessas Soares tinha a capacidade única de estar a ver a história do lado de fora, com um olhar irónico, enquanto lutava para a mudar do lado de dentro.
Desculpem ser tão idiossincrático na minha rememoração. Mas nos próximos dias vamos lembrar Mário Soares de muitas maneiras. Muitos textos se escreverão acerca do seu impacto na nossa história, da sua importância política, daquilo que lhe devemos a ele como a outros combatentes pela liberdade. Seria impossível resumir tudo isso aqui. Concentro-me por isso na forma como Soares por vezes se descrevia a si mesmo: o anti-Salazar. Não só anti-salazarista, note-se, mas sobretudo o oposto polar de tudo o que Salazar era e representava da soturnidade e desesperança do Portugal reprimido. Soares fazia questão de ser o contrário disso, e deu o seu melhor para que pudéssemos também coletivamente ser o contrário do que a ditadura desejou para nós. O anti-Salazar. Anti-fatalismo. Anti-pequenez. Anti-derrotismo. Anti-fechamento. Agora teremos de apreender a ser tudo isso sem a sua presença, mas com a sua memória. Antes de passarmos à análise histórica ou política, a melhor homenagem que lhe poderemos fazer é guardar esse espírito da sua vida.
Lê a crónica completa no jornal Público.
Agora, agora e mais agora brasileiro
Nesta semana foi o lançamento da versão em português do Brasil do Agora, agora e mais agora. Estive em Brasília para partilhar esse momento especial com amigas e amigos brasileiros e para uma conversa sobre a humanidade, o passado, o presente e o nosso agora, agora e mais agora.
Podem encontrar o livro na Tinta-da-China Brasil.
Lê aqui a entrevista entrevista acima para o jornal Estado de Minas.
FliParaíba, obrigado!
Foi com muito gosto que fui até João Pessoa, no Brasil, para participar numa conversa do primeiro Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba), juntamente com José Eduardo Agualusa e José Manuel Diogo. Foi bom estar num festival diverso que destacou a riqueza literária dos países de língua portuguesa e ofereceu um espaço para discussão e troca de experiências, promovendo a literatura como ponte entre as diversas culturas.
Leitura da semana
Camões : poema. - Paris : Livraria Nacional Estrangeira, 1825
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso.