Toda a liberdade aos autoritários e censura aos seus adversários
Carta semanal de Rui Tavares | 29 de maio de 2024
Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos à πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos". Esta semana, caminhamos pela liberdade de expressão na política e a desproporcionalidade perigosa de discursos no parlamento. Além disso, mergulhamos no mundo dos mega-multi-super-ricos e a crescente desigualdade económica. Por um caminho mais obscuro, falaremos do debate sobre a acusação de traição ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa por discutir compensações históricas e observaremos a hipocrisia de alguns políticos em relação à história de Portugal no debate sobre as reparações do passado colonial. E como o futuro deve ser desejado, o nosso caminho se abre com a profundidade da Declaração Schuman, a história da ideia de uma Europa unida, desde a falência da Sociedade das Nações até os ideais de Victor Hugo e William Penn.
Como verão, esta carta semanal é um apanhado dos meus últimos textos no jornal Expresso. Espero que gostem!
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— E… No final da carta, partilho excertos de um ensaio publicado na Revista do Expresso que explica o nome desta carta (o primeiro adjetivo que Homero usa para descrever Ulisses na Odisseia).
Ah! Lembro que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita.
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Rui
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Toda a liberdade aos autoritários e censura aos seus adversários
Claro que colocar a questão em termos de saber se um deputado “pode ou não pode” dizer que um determinado povo é menos digno, como o fez a líder parlamentar do Partido Socialista, pode levar o Presidente da Assembleia da República a dizer que “em meu entender, pode”, até porque na prática não há como impedir alguém de dizer o que lhe vai na cabeça, antes de o dizer. Mas se a resposta fosse, por exemplo, “eu não posso impedir ninguém de dizer o que entende, mas posso a seguir dizer que em meu entender um determinado comentário viola o quadro de valores da Constituição, ou desprestigia o parlamento”, já perceberíamos que a questão não é, efetivamente, entre liberdade de expressão e censura, mas entre dois tipos de discurso, um sucessivo ao outro, e de lugares diferentes, exprimindo conteúdos e mensagens diferentes. Que o atual Presidente da Assembleia da República considere que não deve emitir opinião em circunstâncias como aquelas (ou seja, que se deve auto-censurar) é sem dúvida legítimo, mas não devemos fazer de conta que é sem consequências.
A primeira dessas consequência é o Presidente da Assembleia da República ficar limitado pela óbvia desproporcionalidade da doutrina que se auto-impôs, ou arriscar-se a ser inconsistente. Na véspera do sucedido, ele próprio tinha admoestado (com base no regimento, que diz que os deputados se dirigem ao presidente e aos outros deputados) um deputado do LIVRE por ter saudado “os concidadãos nas galerias”. Que seja repreensível aos deputados saudar quem os elege e lhes paga o salário, mas que lhes seja acessível exprimir sem reparo discurso racista, misógino ou homofóbico, desde que dirigido a quem esteja lá fora, dará origem a absurdos que seriam divertidos de seguir, se não fossem o sinal de uma injustiça maior a anunciar-se. É que entretanto o próprio partido de extrema-direita já veio dizer, pelo seu líder parlamentar, que é a principal vítima de ofensas e injúrias, as quais não aceitará nem permitirá. Como pretende fazê-lo? Não é difícil prever que seja através da intimidação e da coação, que por sua vez levem à auto-censura.
Paladinos da liberdade de expressão contra a censura somos todos. Convém é cuidar de não estarmos a dar toda a liberdade aos autoritários enquanto censuramos os seus adversários. Já aconteceu na história. Mas vamos confiar que ela não se repete.
Podem ler o texto completo no jornal Expresso desta semana.
Deslealdade à pátria é outra coisa
Intervenção pelo LIVRE na reunião plenária de 17 de maio de 2024, na Assembleia da República.
Há os ricos, e depois há os mega-multi-super-ricos
"Nos anos 50, o homem mais rico do mundo era provavelmente Calouste Gulbenkian. Tinha direitos, como se sabe, a cinco por cento dos lucros do petróleo do Iraque e isso resultou numa fortuna que seria o equivalente ao mesmo que custará o novo aeroporto de Lisboa: seis mil milhões de euros.
Mas hoje já não há homens mais ricos do mundo como Gulbenkian, nem em escala nem em tipo de atividade. Os super-ricos de hoje já não são milionários, nem meros multimilionários, nem sequer simples bilionários (nas unidades) como Gulbenkian. Precisamos de novos nomes para eles. São multibilionários, decabilionários (dezenas de milhares de milhões) hecabilionários (detentores de fortunas de centenas de milhares de milhões de euros) e a caminho de ser tornarem trilionários (ou seja, detentores de milhões de milhões de euros). Ainda para mais, estão a aumentar as suas fortunas e a distanciar-se do resto do mundo.
A partir daqui, a mente perde-se com facilidade. Voltemos ao exercício do início: imagine que tem um milhão de euros para gastar por dia. Pois bem, em 2014, o homem mais rico do mundo levaria mais de 220 anos de vida para gastar todo o seu dinheiro ao ritmo de um milhão por dia. Cinco anos depois, o homem mais rico precisaria de mais de 400 anos para o poder fazer. E agora, o homem mais rico do mundo precisa de 670 anos para poder gastar um milhão por dia.
Com fortunas desta escala a questão já não é só se é justa a diferença; é se não é perigoso demais haver gente mais rica do que muitos países do mundo, com dinheiro para comprar sistemas políticos inteiros, exércitos ou meios de desinformação em massa."
Leia a crónica completa no Expresso desta semana.
A outra Europa possível, um ensaio de Rui Tavares
Em primeiro lugar, nem a Declaração Schuman é um documento burocrático nem a Declaração de Independência dos EUA é um poema em prosa. A Declaração Schuman não esconde que, apesar da sua retórica de “pequenos passos” (expressão que na verdade nunca aparece, apesar de ser frequentemente citada pelos eurocratas; Schuman utilizou antes a fórmula “realizações concretas”, destinadas a criar “solidariedades de facto”), o seu objetivo é grandiloquente: nem mais nem menos do que a criação de uma “federação europeia” a que Schuman se refere explicitamente. Por outro lado, a Declaração de Independência americana é na sua maior parte uma lista dos agravos cometidos por Jorge III de Inglaterra, à boa maneira dos cahiers de doléances ou “cadernos de queixas” que eram típicos das sociedades europeias de Antigo Regime; as suas referências aos “direitos inalienáveis” dos seres humanos são pontuais e foram apenas recuperadas e amplificadas no discurso político por Abraham Lincoln, durante e após a Guerra Civil americana, quase cem anos depois.
Em segundo lugar, Schuman não se imaginava a falar a partir de um lugar completamente novo. Hoje, pensa-se comummente que a “ideia de Europa” nasceu só no pós-guerra, decantada dos horrores do Holocausto e da destruição do continente. Mas o próprio Schuman utiliza no seu discurso uma frase que a nós parece enigmática mas que ao seu tempo era muito evidente. Diz ele, logo no início, “não fizemos a Europa, tivemos a guerra”. Reparem, não é “tivemos a guerra” e por isso precisamos de fazer a Europa. É na ordem inversa: não fizemos a Europa e a consequência de não a ter feito foi a Segunda Guerra Mundial em apenas uma geração. Com isto queria Schuman referir-se ao colapso generalizado do Estado de direito, das democracias e dos direitos fundamentais no período de entreguerras e, sobretudo, ao falhanço da Sociedade das Nações e outros projetos de instituições supranacionais que então foram idealizadas ou que ficaram a meio do caminho. Mais ainda, Robert Schuman está a referir-se a uma longa e antiga tradição de projetos de unificação europeia, que vão a Victor Hugo e à sua “ideia cujo tempo chegou” dos Estados Unidos da Europa, no século XIX, ou ainda mais atrás, a William Penn e à sua proposta de uma união europeia com um parlamento próprio em 1693. Para Schuman, a ideia de Europa não é uma filha da guerra; a guerra é que é uma filha da ausência de unidade europeia.
O ensaio completo pode ser lido aqui.
Pode um país perder o juízo?
Considerem o seguinte: na história de 900 anos deste país à beira-mar plantado é capaz de nunca ter havido um chefe de Estado julgado por traição à pátria. Tenho esforçado as meninges à procura de um, mas nada. E não tivemos falta de chefes de Estado desastrados, corruptos, malevolentes ou mesmo tirânicos. Também não tivemos falta de intentonas e até inventonas, se a palavra existe. E, no entanto, até Dom Afonso foi alvo de um processo por incapacidade de governar (e de consumar o matrimónio — para a época não andava uma coisa longe da outra) e não por traição. Miguel de Vasconcelos, que governou para os Filipes, foi defenestrado, mas mesmo assim não foi julgado por traição — e não era chefe de Estado. O Marquês de Pombal, Afonso Costa e José Sócrates foram (e, no último caso, parece que continua a ser) julgados por corrupção, em vão — mas não por traição. E tampouco eram chefes de Estado.
Precisámos então de cumprir a maior parte de um milénio para que somente esta semana, esta última semana do ano da graça de 2024, se passasse neste país o tempo todo a discutir a intenção do chefe de um partido de levar o chefe de Estado a ser julgado por traição, primeiro através de um voto no Parlamento, e depois sabe-se lá através de outras altas instâncias. Pouco importa, porque o caso não passará no Parlamento. Pouco importa também, porque o que o seu inventor obteve o que queria, que era ter todas as televisões a falar disto toda a semana.
Para quem, daqui a umas décadas, encontrar este texto e se perguntar quem seria o réu de tal processo, quem foi esse chefe de Estado que, mescla de Calígula com Ciro, o Jovem, e Quisling — quem é ele que merece, segundo alguns, ser julgado por traição? Pois bem: trata-se do afável professor de Direito, constitucionalista e comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa.
“A sério?!”, perguntais, “e que fez ele?” Entregou as Selvagens às Canárias? A ilha do Corvo aos Estados Unidos da América? Uma açoteia algarvia ao reino de Marrocos? O crime de traição à pátria, relembre-se, está tipificado do seguinte modo nos crimes contra o Estado por altos responsáveis deste: “O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar separar da mãe-pátria, ou entregar a país estrangeiro, ou submeter a soberania estrangeira, o todo ou uma parte do território português, ofender ou puser em perigo a independência do país será punido com prisão de dez a 15 anos.”
Que fez então Marcelo Rebelo de Sousa? Disse, numa conversa com imprensa estrangeira, que o país pode ter de debater indemnizações a vítimas dos seus atos, ou reparações históricas.
A crónica completa pode ser lida neste link.
A história não é só para o que dá jeito
Ouço alguns políticos de direita a rasgaram as vestes e dizer que gostam muito de Portugal e pergunto-me, “a sério”? É que gostar da história de Portugal é cuidar dela, é procurar conhecê-la melhor, é investir na sua investigação, é dar mais meios para o ensino e a aprendizagem das humanidades, é tentar entendê-la por inteiro e não só às postas, é apoiar os departamentos de estudos portugueses no exterior e procurar que eles não se sintam envergonhados pela falta de meios que não lhes permite sequer colaborar em condições com os seus congéneres dedicados a outros países e regiões, é procurar que os jovens luso-descendentes pelo mundo fora tenham algum contacto com a história do país de onde vieram os seus pais — e até agora estou só a elencar aquilo que é absolutamente consensual. No entanto, não vejo nenhum desses políticos a defender qualquer das medidas listadas atrás. Já que amam tanto a história de Portugal, poder-se-ia supor que algum desses políticos tivesse por ela interesse? Mas, bem ou mal, desde os livros de Freitas do Amaral que não me lembro de nenhum político de primeira linha da direita portuguesa que tivesse publicado qualquer coisa sobre a história do país que amam. Tendo dedicado a maior parte da minha vida adulta a várias das atividades que menciono no parágrafo anterior, sei bem que há na gritaria escandalizada de vários políticos de direita com a questão das possíveis reparações pelo passado colonial português — lançada por outro político de direita, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa — uma grande dose de hipocrisia. Na verdade, eles só se lembram da história de Portugal quando é para tentar impedir que se faça qualquer coisa com ela. Nisso são como os pais ausentes e negligentes que alegam amar muito os filhos mas lhes nunca mudaram uma fralda ou aturaram uma birra.
A crónica completa está no Expresso (cliquem no link para o texto completo para assinantes).
Leituras da semana
O Pacto Europeu para as Migrações e Asilo: uma oportunidade perdida? — Teresa Pina
The Labour Theory of Value and the Concept of Exploitation — G.A. Cohen
A history (and defense) of left vs right — Matthew Yglesias
Telegram
É por aqui o meu canal no Telegram: https://t.me/ruitavarespt . Vemo-nos por lá!
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
Leia o resto no Expresso para assinantes.