Olá amigas e amigos,
Bem-vindas e bem-vindos a πολύτροπον (diz-se polítropon) - a minha carta semanal "de muitos caminhos".
Hoje temos “Vivo, filho do desperto” — o tesouro da literatura peninsular de que nunca ouviram falar, escrito por um contemporâneo de Afonso Henriques, e que conta como um filósofo pode ser autodidata sem nunca conhecer linguagem humana, e ainda para mais aparecendo por geração espontânea, ou talvez não. Uma descoberta fascinante deste fim de Verão, daquelas em que dá vontade de pegar toda a gente pelos colarinhos e dizer-lhes “já ouviu falar de Ibn Tufayl?”.
Recordo que πολύτροπον (diz-se polítropon) - "de muitos caminhos" é inteiramente gratuita. — Se quiserem saber mais sobre o nome desta carta, vejam aqui.
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Rui
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Um tesouro que não sabia que tínhamos
(…) Numa ilha chamada Waq Waq apareceu um rapazinho ainda bebé. Segundo alguns sábios, terá nascido ali de geração espontânea, mas Ibn Tufayl atalha para nos dizer que há outra história segundo a qual o bebé era filho de um amor secreto da irmã do sultão da ilha vizinha, que fora constrangida a pô-lo numa arca e lançá-lo ao mar, esperando que sobrevivesse. O menino chamava-se Hayy, o que quer dizer “vivo”; o seu pai seria um homem chamado Zaqdan, o que quer dizer “desperto”. Daí o título do livro.
Na ilha deserta, Hayy foi criado por uma gazela, que morreu quando ele chegou aos sete anos. Foi aí que ele — pensando sempre por imagens, uma vez que ninguém lhe tinha ensinado linguagem humana — começou a tentar perceber a vida e a morte, o que o levou a perguntar-se sobre aquilo que anima o universo, o que o levou a refletir sobre a sua própria reflexão, e por aí adiante. O livro prossegue assim, em etapas de sete a sete anos da vida de Hayy, sempre em estágios mais altos de iluminação, até chegar aos 49 anos, idade em que (como previsto por Aristóteles) atinge a felicidade e sabedoria supremas. E isto sem professores, sem sacerdotes, sem livros sagrados, nem religião organizada, nem revelação divina, mas apenas pela observação da natureza. Só está vivo quem está desperto para observar.
No Expresso desta semana podem ler a crónica completa
Rūmī
Rumi, persa do sec. XIII, é considerado um dos maiores poetas místicos da história, o seu trabalho transcende as fronteiras culturais e religiosas, sendo lido em todo o mundo. Deixo-vos aqui um seu poema.
Podem encontrar mais sobre Rumi neste link.
Al-Farabi
Nascido por volta de 872 na região de Fārāb, no atual Cazaquistão, Al-Farabi é frequentemente chamado de "Segundo Mestre" (sendo o primeiro Aristóteles) devido à sua profunda influência na filosofia islâmica e ocidental. Al-Farabi, um viajante da rota das sedas, foi um dos responsáveis pela recuperação de Platão e Aristóteles e a palavra “alfarrábio”, como conhecemos, vem do seu nome.
Deixo uma obra sua traduzida para o inglês The Attainment Of Happiness e para quem lê árabe, a obra está aqui com o título Kitab tashil as-Saadah.
Al-Farabi é também uma das personalidades que retrato no primeiro volume de Agora, Agora e Mais Agora que podem ouvir aqui ou encontrar o livro na Tinta-da-China
Leituras da semana
The Philosophy of Plato and Aristotle — Al-Farabi
Al-Farabi retrata a obra de Platão e Aristóteles.
Incoherence of the Philosophers — Al-Ghazali
Crítica à filosofia islâmica, especialmente contra as influências da filosofia grega no pensamento islâmico, representada por figuras como Avicena (Ibn Sina) e Al-Farabi. Foi refutado pelo filósofo Averróis na leitura que se segue abaixo.
Incoherence of the Incoherence — Averróis
Averróis (Ibn Rushd) escreveu "A Incoerência da Incoerência" (Tahāfut al-Tahāfut) como uma resposta às críticas de Al-Ghazali, defendendo a compatibilidade entre a filosofia aristotélica e o Islão.
Esse debate entre Al-Ghazali e Averróis marcou um dos pontos altos na história da filosofia islâmica.
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Fala-me, ó musa, de um homem problemático
Sobre Emily Wilson, a mulher que se aventurou a ser a primeira a traduzir a Odisseia para inglês e o tipo de homens que se escandalizam com isso.
Mas vamos lá: chamar “complicado” a Ulisses é ou não ofensivo? E se fosse? É que a pergunta deve ir um pouco mais atrás: quem diz que é apenas suposto elogiar Ulisses na primeira linha da “Odisseia”?
Vamos à palavra tal como Homero, ou talvez “Homero”, a talvez disse primeiro e ele ou outro a escreveu depois, há cerca de entre 3000 e 2600 anos. A palavra — o primeiro adjetivo usado para descrever Ulisses na Odisseia é πολύτροπον, que se pode transcrever como “polítropon”, um acusativo de “πολύτροπος” (polítropos), para modificar o substantivo ἄνδρα, homem. Polítropon não é complicado de explicar: “poli-” quer dizer “muitos” e “tropos” que dizer “caminhos”, pelo que “polítropon” se poderia traduzir literalmente como “de muitos caminhos”. “Do homem conta-me, ó Musa, de muito caminhos” seria a tradução literal das primeiras palavras da “Odisseia”.
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